Conheça um pouco da rica história de vida do Santanense Paixão Côrtes , aos 85 anos personagem decisivo na pesquisa da cultura popular gaúcha e do registro das tradições do Rio Grande .
Paixão e Belizário - Início da década de 50.
Arquivo Pessoal Paixão Côrtes.
Cultura - O senhor nasceu na zona rural?
Paixão - Não, nasci na cidade. A casa de meu avô ficava numa das principais ruas de Santana. Meu pai alugou a casa ao lado. na esquina e abriu uma parede, fazendo uma ligação entre as casas. Era praticamente uma casa só.
Cultura - Era uma família grande?
Paixão - Não, nós somos dois irmãos e uma irmã de criação. Meu avô materno era de Santana, Rodrigues D'Ávila; meu avô paterno era de Bagé, Paixão Côrtes. Meu avô materno sempre esteve ligado ao campo, tinha duas ou três estâncias no Interior, e eu me criei dentro delas. Desde pequeno, eu ia a essas estâncias, acompanhando meu pai, que era agrônomo.
Cultura - Ele tinha formação universitária?
Paixão - Ele se formou em Porto Alegre e depois estudou nos Estados Unidos por cinco anos.
Cultura - Isso devia ser bem raro na geração dele, não?
Paixão - Sim, era excepcional. Ele se formou em Porto Alegre, depois ficou cinco anos nos Estados Unidos. O bom foi que ele não teve apenas a vivência universitária, ele fez de tudo, foi peão de estância, conheceu bem a vida, como é o comum nos Estados Unidos. Aqui é que tem essa coisa de separação social. Ele trouxe essa bagagem norteamericana. Até na mesa se sentia a diferença, tinha doce e salgado ao mesmo tempo, a carne era quase crua, sucos, essa coisa do breakfast. Ele era funcionário da Secretaria da Agricultura e prestava assistência técnica naquela área de Santana do Livramento. Eu ia junto.
Cultura - Então a sua infância se divide entre cidade e campo sem distinção?
Paixão - Exatamente. Meu pai tinha uma chácara, um sítio, então permanentemente a gente ia para lá e fazia grandes festas. Ficava-se dois dias carneando, festeando, aí quando terminava um assado já carneavam de novo, lá vinha mais gente, e sesteavam debaixo das árvores mesmo, e seguia o baile. Era uma coisa.
Cultura - O seu avô também tocava?
Paixão - Sim, o João Pedro Rodrigues D'Ávilla. Eu tenho a gaita dele, de oito baixos. Sempre ouvi música em casa, era natural, nunca precisei procurar por isso.
Cultura - O senhor fica em Santana do Livramento até quando?
Paixão - Até 1939, 1940. Eu tinha uns 12 anos. Fomos morar em Uruguaiana, porque meu pai foi nomeado diretor da Estação Experimental, um posto zootécnico bastante avançado.
Cultura - Quando o senhor veio a Porto Alegre pela primeira vez?
Paixão - Em 1935. Teve a exposição do centenário da Revolução Farroupilha, no que hoje é o Parque Farroupilha, e o meu pai era o responsável pela exposição da pecuária. Fez seleção dos grandes animais, etc. E eu andava com ele por tudo.
Cultura - E qual foi o impacto de Porto Alegre para o senhor?
Paixão - Teve um impacto, por exemplo, pelo bonde. Nós, na fronteira, chamávamos bonde o que é ônibus, na verdade.
Cultura - O senhor voltava para as fazendas com freqüência enquanto morava na Capital?
Paixão - Sim, nas férias eu ia para as estâncias de Bagé, de Júlio de Castilhos, de Cruz Alta, e lá de senvolvia toda a atividade normal de um peão de estância. E eram fazendas bem grandes, de duas léguas de campo, serviço puxado. Uma das sedes da fazenda do meu tio, lá em Cruz Alta. ficava num extremo, e o trabalho a ser feito estava a duas léguas. A gente tinha que acordar às quatro da manhã, ir a cavalo para chegar às sete e meia, mudar o cavalo, e aí começar o serviço. Hoje é que me dou conta como era puxado para um guri de 13, 14 anos, como eu. Era uma fazenda tradicional, tudo no laço, sedes grandes, 2 mil animais, fazendo tropa e tudo. De noite, festeava-se, carneava-se, para, na manhã seguinte, bem cedo, tudo de novo. Serviço mesmo. Então, tudo que falo nas minhas atividades, hoje, não foi de palco que aprendi. Foi muito espontâneo e real.
Cultura - Lembra das músicas que tocavam?
Paixão - Sim. Era o bugio, limpa-banco, havanera, chote, rancheira.
Cultura - Se cantava alguma letra, junto?
Paixão - Sim, as letras que se cantavam eram as décimas. A Décima do Cavalo Baio, O Boi Barroso ...0 Boi Barroso é a mais expressiva manifestação da literatura galponera. Fora isso, umas valsinhas campeiras... (segue-se um improviso cantarolado e coreografado, para riso de todos).
Cultura - Voltando à sua trajetória, o senhor disse que veio estudar no IPA. E depois?
Paixão - Logo depois, quando tinha uns 17 anos, perdi meu pai, o que mudou toda a estrutura familiar. Tive que trabalhar e tudo o mais. Até os 17 eu tinha aquela vivência campeira. Ficava no campo do primeiro ao último dia de férias, na lida bruta, com animais, e doma daqui, e monta dali, e ginetea, e derruba, e cai e se quebra todo, e segue. E diariamente! Não era uma prova. Não tinha essas frescuras de hoje, de concurso e tal.
Cultura - O senhor teve que trabalhar e começou com o quê?
Paixão - Na Secretaria da Agricultura. O meu pai se dava muito bem com todo mundo lá, e como eles souberam da situação, disseram: "Vamos chamar o Paixãozinho", que era como eles me chamavam. Ou então era o "Peruzinho", porque o apelido do meu pai era "Peru". Então comecei no serviço de Ovinotecnia com o doutor Geraldo Veloso Nunes Vieira.
Cultura - E o senhor continuava estudando?
Paixão - Comecei a estudar no Julinho, de noite, em 1946. Terminei o curso científico em 1947. Então me oportunizaram um curso sobre técnicas de classificação de lã, e aí me especializei.
Cultura - Em que ano entra na faculdade?
Paixão - Em 1949, Agronomia, na UFRGS.
Cultura - Faz o curso normalmente.
Paixão - Não muito normalmente. (Risos). Porque aí eu começo a verificar essa ausência de preservação dos valores e da cultura gaúcha. Sou produto da II Guerra Mundial.
Cultura - Como é que foi a idéia de fundar o "departamento de tradições" no colégio?
Paixão - Departamento de Tradições Gaúchas do Colégio Júlio de Castilhos. Como eu estava ausente da vivência contínua com a vida na campo que me era familiar, eu comecei a conversar com as pessoas e fui vendo que um era de Cruz Alta, outro de Bagé, não sei mais onde. E aí combinávamos: "Aparece lá para tomar um mate". Tomar mate, naquela época, só dentro de casa. Na rua, nem pensar. Nem na porta de casa. Bombacha ninguém ousava vestir em Porto Alegre.
Cultura - O senhor chegou a se sentir discriminado em Porto Alegre?
Paixão - Discriminado, propriamente, não. Porque quando nós entramos nessa história estávamos firmes: "Queremos isso, e ponto. As conseqüências, a gente vê depois. Tem que dá-le pau, dá-le pau" (risos).
Cultura - Mas antes de formar o departamento, o senhor chegou a se sentir constrangido pelos hábitos da cidade?
Paixão - Não. Eu tinha uma certa intimidade já com a vida de Porto Alegre. Mas acontece que na época estava se vivendo a ditadura Vargas. Tinha-se medo de ter uma bandeira do Rio Grande do Sul. As bandeiras regionais foram queimadas. Aqui nós escondemos, não queimamos, mas não podíamos usar, mostrar. Meus tios, por exemplo, eram muito pela preservação dos valores, além de serem veladamente contra o Vargas, então a gente ouvia essas coisas: "Cuida com o DIP" (Departamento de Imprensa e Propaganda). E aí isso já se misturava com o comunismo, tudo parecia uma coisa meio nebulosa. Por exemplo, além de não se ver a bandeira, não se cantava o hino. Então o pessoal do Interior se reconhecia no Colégio, se identificava. Começamos a nos encontrar para tomar mate, contar histórias. Coisa de galpão, mas como não tinha galpão, a gente inventava um. E nessa época praticamente não havia literatura regional. O único que ainda sobrevivia era o Vargas Neto. E o Antônio Chimango, é claro. Mas era uma literatura mais rebuscada. não a coisa galponeira a que nós estávamos acostumados. Daí surgiu a nossa idéia.
Cultura - Vocês logo perceberam que o Colégio Júlio de Castilhos poderia abrigar essa iniciativa?
Paixão - Ah, não foi tão simples. O negócio é que eu botava bota e bombacha e ia para a aula. E era aquele comentário só. Eu morava na Sarmento Leite, e o Júlio era o antigo, ainda (na João Pessoa, onde fica hoje a Faculdade de Economia da UFRGS). De noite, eu ia pilchado. Quando fazia frio, ia de poncho. Chovia, botava um chapéu. O pessoal falava: "Olha o guasca de fora", "Olha o guapo". E eu não me ofendia, sabia o que eu era, eles não estavam me ofendendo ao dizer aquilo.
Cultura - E as moças?
Paixão - Não tinha esse contato com as mulheres. Por exemplo, o galpão era só homem. Quando fundamos o 35, era só homem. E o galpão é a célula fundamental da nossa gente. Nós nos criamos ali, em volta, tomando mate. As moças não participavam. Elas estavam em outra. "Miss", "Star", tudo nome americano. E eu fui indo, vestido assim. Foi aí que eu comecei a pensar: por que a gente não faz um núcleo de resistência a essas loucuras norte-americanas e tudo o mais que está aí? Fui bolando, pensando, sozinho. E o Grêmio Estudantil tinha de tudo - esperanto, teatro, e não sei mais o quê. Fui nas reuniões, três sábados seguidos, e era sempre a mesma coisa: "Não sobrou tempo para ti, Paixão". Tudo bem, lá ia eu no outro sábado de novo. Um dia expus a coisa: "Acho que a gente deveria preservar as nossas tradições", etc., preparei um arrazoado. Tinha a Chama da Pátria, no 7 de setembro, data magna da pátria. Foi aí que tive a idéia de tirar uma chama da pira da pátria e levar para o Júlio de Castilhos, fazer uma continuidade da chama da pátria, lá num candeeiro, até o 20 de setembro. E o pessoal dizia: "Mas como?". Então fui na Liga de Defesa Nacional, um órgão muito importante na época, eu conhecia o major Vignolli, apresentei minhas intenções, numa carta que nós tínhamos preparado. Ele me perguntou: "Então, qual é a idéia?". E eu, numa insolência que só hoje percebo, respondi: "Vou tirar uma centelha da pira da pátria para levar para o Colégio Júlio de CastiIhos". Imagina, eu com 18, 19 anos. Aí ele chamou um sujeito: "Ô Pimentel, vem aqui". O sujeito chega e diz: "E aí, Paixãozinho, como é que vai?", todo entusiasmado. Era amigo do meu pai, com quem tinha trabalhado lá em Santa Maria, me conhecia desde pequeno. E perguntou: "O que é que tu estás fazendo aqui?". A idéia era prolongar do 7 de setembro até o 20, da Revolução Farroupilha. Aí eles me perguntaram como é que eu queria fazer isso, se era a cavalo, como é que era e tal. Eu tinha pensado em três cavalos - um com a bandeira do Rio Grande, outro a bandeira do Colégio Júlio de Castilhos e outro com a bandeira do Brasil.
Grupo dos 8
Cultura - E quem eram os seus parceiros?
Paixão - Eram o Ciro Dutra Ferreira e o Fernando Machado Viana. Na saída, o doutor Pimentel me disse que estavam trazendo os restos mortais do Davi Canabarro. Quem traria era o Coronel Canabarro. Eu disse: "Mas ele é casado com uma prima minha!". Enfim eu estava em casa! Então ele me diz: "Estamos com um problema: não arrumamos gaúchos para fazer um costado (guarda de honra). Tu não me arrumas uns gaúchos". E eu: "Para quando?"
Cultura - O que ele queria dizer com "gaúchos"? Por que ele os queria?
Paixão - Porque o Davi Canabarro era uma figura da Revolução Farroupilha, da Guerra do Paraguai, e era para ser trazido para o Pantheon do Rio Grande. Um negócio cívico. Disse para ele que ia tentar, fui falando com um e com outro, fazendo uma exaltação do Canabarro. Convencia um, que convencia outro. Mas aí não tinha arreio. E cavalo? Não tinha. Fui falar com o doutor Pimentel: "Olha, consegui um piquete bom. Gente firme. Mas não temos cavalo, nem arreio". O doutor Pimentel disse que conseguia os cavalos, do Regimento Osório. "E os arreios?", perguntei. "Isso vai ser dificil". Falei para ele: "O senhor me arruma uma caminhonete e dois homens que eu dou um jeito". Cinco horas da manhã saímos em direção a Belém Novo. Foi clareando o dia e iam aparecendo aquelas figuras a cavalo; eu mandava parar a caminhonete e começava a dar um discurso sobre o gaúcho, a pátria, o gauchismo, e os caras ficavam atônitos (risos). Assim arranjei 14 arreios. Só na palavra! Devolvi um por um, eu mesmo. Montamos os arreios e conseguimos oito pessoas. Faltou gente para montar, as pessoas ficavam com vergonha. Tu podes imaginar oito loucos vestidos de gaúcho, de faca?
Cultura - E o que as pessoas achavam?
Paixão - Não dava para achar, porque a gente "nem tava"! E as pessoas ficavam atônitas. Viemos lá do Regimento Osório, descemos a antiga Rua da Conceição e apertamos os arreios defronte ao Hotel Umbu. Nós íamos ficar por ali, tomando um trago e tudo o mais, esperando o cortejo que vinha do aeroporto. Chega a polícia: "Estão armados? Não pode. Estão presos". E aí começou a argumentação.
Cultura - O senhor era o embaixador deles?
Paixão - Não, todo mundo falava. Menos o Siqueirinha, que até hoje não fala (risos), o Antônio João Sá de Siqueira, médico veterinário.
"Para nós, não era folclore. A palavra era tradição"
Paixão - Não dava para achar, porque a gente "nem tava"! E as pessoas ficavam atônitas. Viemos lá do Regimento Osório, descemos a antiga Rua da Conceição e apertamos os arreios defronte ao Hotel Umbu. Nós íamos ficar por ali, tomando um trago e tudo o mais, esperando o cortejo que vinha do aeroporto. Chega a polícia: "Estão armados? Não pode. Estão presos". E aí começou a argumentação.
Cultura - O senhor era o embaixador deles?
Paixão - Não, todo mundo falava. Menos o Siqueirinha, que até hoje não fala (risos), o Antônio João Sá de Siqueira, médico veterinário.
Cultura - A polícia queria levar você?
Paixão - Queria. Um deles perguntou: "De onde o senhor é?". Eu respondi. E ele: "Mas é lá dos meus pagos!". E nos encontramos. Aí um dos policiais disse para gente cobrir a faca com o pala para não ficar mal para eles. Nisso passou o jipe com os restos mortais do Canabarro, montamos e fomos atrás. Seguimos em direção ao Centro, até a Praça da Alfândega. Ali, numa solenidade, com escolas, políticos e tal, não hastearam a bandeira do Rio Grande, nem tocaram o nosso hino. Só o hino nacional. Houve uma saudação do dr. Dante de Laytano, não lembro de quem mais. Ficamos por ali, ao lado da Brigada. Nesse momento, um guri pequeno e magrinho veio nos procurar. Falou com o Ciro Dutra Ferreira: "De onde é que vocês vieram?". E o Ciro: "Daqui mesmo, estudamos ali no Júlio de Castilhos". E o magrinho: "Mas como? No Júlio? E como é que eu não sei disso?". Ele estudava de tarde, e nós de noite. Aí o Ciro mandou ele falar comigo: "Fala com aquele bigodudo lá da ponta". Combinamos que ele iria aparecer de noite lá no Júlio. Era o Barbosa Lessa.
Cultura - O que lhe chamou atenção nele?
Paixão - As coisas que ele falava sempre estavam relacionadas à História. Ele sempre costurava com uma referência da História. Não era um homem campeiro, com a linguagem campeira, apesar de ter uma experiência parecida com a nossa. E ele tocava violão, já arranhava umas quadrinhas. Depois disso é que veio a Ronda Crioula, a Semana Farroupilha, o Candeeiro Crioulo, apareceram outros que não eram gaúchos nem nada, eram simplesmente urbanos. como o Ivo Sanguineti, que era um cara dedicadíssimo, dormia lá para que o fogo não apagasse, E foi até o dia 20 de setembro, com palestra com o Manoelito de Ornelas.
Cultura - Como é que o Manoelito de Ornetas, que era um grande intelectual, foi até o colégio, para falar com uns guris gaúchos?
Paixão - Eu é que o convenci. Peguei o Ciro e fomos até a casa do Manoelito. Ele tinha a Prosa da Terças, seção do Correio do Povo; então nós ligamos e nos apresentamos: "Olha, nós somos estudantes, o senhor poderia nos receber?". Apresentamos para ele o que estávamos fazendo e pedimos para ele falar. Na época ele estava lançando o livro Gaúchos e Beduínos. Quem acabou ficando na conferência foi o Lessa, porque foi de tarde, e eu tinha que trabalhar. Mas o melhor é o seguinte: convidamos o Manoelito para ser jurado do baile! Não sei até hoje como tivemos a petulância de fazer uma coisa dessas... O baile foi lá em Teresópolis.
Cultura - A idéia era fazer uma representação da vida campeira?
Paixão - Não! Para reviver! Não tinha nada de patacoada! Era reviver os nossos hábitos, puramente. Café de chaleira, pastel de carreira, fogo no chão, fumaça. E a música foi uma coisa! Falei com um. maestro e pedi uma banda para o baile e ele me disse: "Eu tenho bandinha". Era dessas de alemão. Aí não dava! (risos). Mas ele me disse: "Eu te arrumo gaiteiro, tocador de violão e tal".
Cultura - Qual era o repertório?
Paixão - Rancheira, xote, polca, de vez em quando tocavam um dobrado, desses da zona alemã, umas marchinhas meio cívicas...
Cultura - E o Manoelito de jurado?
Paixão - No meio daquela bagualada... (risos). O Ciro e eu fomos buscá-lo de auto, pilchados, e ele todo formal, de gravata. Ele ficou encantado. Escreveu uma crônica, depois, contando do baile e dizendo aquilo que nós tínhamos explicado para ele - para nós, não se tratava só das roupas, das danças, era também a dignidade, a moral do nosso povo.
Cultura - Vocês falavam abertamente sobre esse desconforto com o americanismo?
Paixão - Sim! Era só uma questão de analisar, de observar: o que é que tinha de música nossa? O Boi Barroso, Prenda Minha, Gauchinha e Minuano.
Cultura - E como foi a expansão do movimento, da idéia de tradicionalismo?
Paixão - Fundamos o Departamento, com aquela loucurada toda de trazer a chama e o ato cívico que se seguiu, o baile com mais de 200 pessoas, e depois nós perguntamos: "E agora?". Porque aí mais gente apareceu, gente que nem nos conhecia, e foi então que o Lessa disse: "Temos que nos reunir para formar um clube de tradições". Ele saiu por aí com um caderninho pegando nome e endereço de tudo que era gente interessada em participar e começamos a nos reunir na minha casa, o nosso primeiro quartel-general, e foi enchendo de gente. Aquilo começou a crescer, começou a chegar mais gente, gente de cabeça branca, gente séria...
Cultura - O senhor conheceu o Aureliano de Figueiredo Pinto?
Paixão - Não. Os literatos não existiam na forma da popularidade. Quem é que ia dizer verso do Aureliano? Tinha que ser declamador ou o próprio poeta. Declamador não tinha, ninguém queria se expor ao ridículo de dizer versos. Nós vínhamos de baixo, e a literatura era para os nobres. os sábios, os intelectuais, os dominadores da lingüística...
Cultura - E o senhor se lembrava do seu pai, por essa época?
Paixão - Sim, porque o meu pai, quando eu estava em Uruguaiana, comprava uns livrinhos. Queroquero, do Roque Callage, e me fazia ler. E lá em Uruguaiana tinha o Grêmio Literário Castro Alves. E nós éramos da campanha, então fundamos um grêmio literário Catulo da Paixão Cearense.
Cultura - Por que o Catulo?
Paixão - Porque era um poeta popular. falava das coisas da terra, com termos regionais. Eu era muito - guri, não cheguei a fundar, mas estava lá. Só declamava poemas do Paulo Setúbal, João, o Tropeiro. E foi ai que eu comecei a aprender a declamar.
Cultura - Vocês se sentiam fora disso?
Paixão - Não, é que nós vivíamos e os outros cultuavam (risos). Até aproximar uma coisa da outra, levou tempo. Eu fui um dos primeiros a sair por aí á declamar versos e tudo mais.
Cultura - Como é que o senhor e o Lessa começam a fazer pesquisas de cultura popular?
Paixão - Quase não havia elementos para se consultar. A gente ouvia coisas de citação. Queríamos sedimentar nossa cultura, formar a sociedade tradicionalista. Quando a gente foi registrar o 35 no cartório, não permitiram! Tivemos que mudar "patrão" para presidente, "capataz" para, sei lá, "vice-presi dente". Para sedimentar a simbologia do universo da estância, a idéia do patrão, do capataz, do posteiro, da invernada, não foi fácil. E também tinha muito gaudério meio grosseirão, que ia mais pela patacoada, e nós tínhamos que controlar.
Cultura - E suas pesquisas com o Lessa? Ele era o seu maior interlocutor?
Paixão - Sim, havia uma identificação muito forte. Então veio um convite do governo uruguaio para uma representação brasileira de gaúchos no Dia de la tradición, em Montevidéu, em 1949. Mas aí vieram os gaúchos das guerras de 93 e 23 com as papagaiadas. "Porque eu sou maragato!", dizia um, aqui, e outro vinha com "Eu sou pica-pau", e nós tivemos que afastar isso "Aqui não se discute isso!". Os ânimos estavam assim, ainda mais que tinha acabado o Estado Novo, tinha um clima de revanche, de acerto de contas.
Cultura - Como se dá a fundação do 35?
Paixão - O nome nós decidimos numa reunião em 5 de janeiro de 1948, mas a fundação foi em 24 de abril. E quando veio o convite uruguaio, o governo de Walter Jobim viu que o CTG 35 era uma gurizada e achou melhor, por precaução, mandar junto uns oficiais da Brigada, uns tipos excelentes. Em Montevidéu, desiflamos e declamamos, foi uma beleza! Aí chegou a hora da dança. E os castelhanos nos perguntavam: "Que danças vocês têm?!
Cultura - Que danças vocês tinham?
Paixão - Nós não tínhamos nada. E o que eu me perguntava era como os argentinos e os uruguaios tinham aquele monte de dança e nós não tínhamos nada. E o Lessa dizia "O Cezimbra Jacques diz isso, O Walter Spalding aquilo." Ele já tinha lido tudo.
Cultura - E já existia a noção de folclore?
Paixão - Não! Não tinha nada. Em 1947 foi a Unesco que definiu um apoio ao folclore, da Unesco se chegou à Comissão Nacional, e a Regional só se fundou aqui em 1948, depois da fundação do 35.
Cultura - E vocês se identificavam com a palavra "folclore"?
Paixão - Não, para nós a palavra era "tradição". Hábitos e costumes dos nossos antepassados. Foi daí que começou a nossa pesquisa. Não tinha descrição nenhuma, partitura nenhuma, então o Lessa e eu começamos a procurar. Eu viajava muito, pelo serviço, então íamos cada um para um lado. Começou em Palmares. Eu estava falando com um rapaz sobre danças tradicionais e ele me falou da tal "dança do pezinho". Eu não sabia: "Que dança do pezinho? Vocês dançam isso?" E o cara: "Claro, lá na praia, nas festas". E aí formou-se um grupo e nós fomos a Palmares para pesquisar. Bem, se a cem quilômetros de Porto Alegre tem uma dança dessas, como é que não vai ter por esse Estado inteiro?
Cultura - E o senhor viajava mas era funcionário da Secretaria de Agricultura, ainda?
Paixão - Sim, era só nos finais de semana que dava para fazer a viagem. Um dia o Ênio Freitas e Castro, que era da Secretaria de Educação, emprestou um gravador primitivo. Eu pagava duas passagens e levava o gravador.
Cultura - E quem é que custeava?
Paixão - Ora, quem é que custeava, eu! (risos). Já era loucura falar no assunto, imagina que alguém ia dar dinheiro para essas bobagens (risos).
Descobrimos o gaúcho social
Extra classe - O que levou o senhor, então com 19 anos, e o Barbosa Lessa, com 16, dois estudantes do ginasial do Colégio Júlio de Castilhos em Porto Alegre, irem a campo pesquisar sobre a identidade do gaúcho numa época em que o conceito de tradicionalismo não existia e a definição de folclore ainda era muito vaga?
Paixão Côrtes - Na verdade, nenhuma das duas primeiras palavras - tradicionalismo e folclore - estava dicionarizada. Pelo menos para nós (risos). Em 1947, o próprio termo antropologia era desconhecido para nós, pois era de uso restrito dos eruditos. Nunca tivemos a pretensão da antropologia. Nossa pesquisa era de cunho popular, da busca do linguajar, da vestimenta, da música e dança campesinos do nosso estado.
EC - Dá para dizer que o senhor e o Barbosa Lessa são os inventores do tradicionalismo?
Paixão - Não, nós não temos a pretensão disso. Antes de nós já havia registros de estudiosos que, inclusive, serviram como base para a nossa pesquisa. Mas tratava-se de historiadores e escritores que falavam dos feitos do gaúcho mítico, do guerreiro, do centauro dos pampas. Só o que existia era a história farroupilha e a história das revoluções. O que restou foi o registro oral de memória, de que nós saímos à cata. Na verdade, eu diria que nós iniciamos um novo ciclo.
EC - E como vocês faziam esta pesquisa? Qual sistemática utilizavam?
Paixão - Nós arrolávamos todas as informações que conseguíamos. Depois disso selecionávamos e registrávamos tudo, de forma que as cantigas e danças pudessem ser executadas a partir desse registro. Dos depoimentos eram registradas as partituras e os passos de dança. Assim, não nos contentávamos com o registro literário. Queríamos garantir que a partir daquele material se pudesse cantar e dançar aquelas peças. Buscávamos a fonte, selecionávamos o material, registrávamos e transmitíamos adiante. Só isso.
EC - Dependia-se muito da memória das pessoas. Qual era o procedimento?
Paixão - Eu e o Lessa recebíamos a informação de que em determinada cidade havia uma pessoa, geralmente já idosa, que sabia cantar e dançar determinado ritmo. Pegávamos as malas e íamos procurar a tal pessoa. Dependíamos exclusivamente da memória delas. Muitas vezes não tínhamos qualquer referência. Então, já perguntávamos logo pelos habitantes mais idosos. A forma do registro era simples. Perguntávamos: o senhor, ou a senhora, poderia cantar e dançar a tal música? Registrávamos tudo por desenhos e partituras. Isso só ficou mais fácil depois que conseguimos uma máquina de gravar emprestada.
EC - Qual era a reação?
Paixão - Era de espanto (risos). Todos se perguntavam por que jovens como nós viviam procurando por velhos. Outros, muito desconfiados, achavam que estávamos atrás de algum tesouro escondido (mais risos). Era preciso conquistar a confiança das pessoas para conseguir que elas, geralmente entre os 60 e os 80 anos, cantassem e sapateassem em uma época de plena proliferação da cultura norte- americana.
EC - Qual era o cenário da cultura gaúcha no pós-guerra?
Paixão - Era o auge do pan-americanismo. Para se ter uma idéia, se um camponês saísse de casa em direção à cidade, carregava uma muda de roupas para substituir as bombachas quando fosse chegar. Se não fizesse isso era visto com maus olhos. Era considerado um cidadão de segunda classe. O próprio chimarrão, na cidade, era consumido apenas dentro da residência e longe das janelas. Enquanto o modernismo estava na ordem do dia, um grupo de jovens secundaristas saía na busca de suas raízes.
EC - E vocês chegaram a uma imagem clássica do gaúcho, que praticamente não existia no imaginário popular.
Paixão - O gaúcho sempre existiu como o tal centauro dos pampas, o monarca das coxilhas ligado a um fato épico, histórico e político, e não mais do que isso. Mas esta é uma figura poética que surgiu para se transformar em um símbolo. E símbolos são importantes para que se mantenha a identidade do povo. Só que esta imagem já existia. O que fizemos foi recuperá-la e dar-lhe uma outra dimensão. Até então, o aspecto social e recreativo era totalmente desconhecido. Era Boi Barroso, Prenda Minha e estamos conversados. Encerrou-se o repertório musical e coreográfico do Rio Grande. Havia os registros do Cezimbra Jacques e do Simões Lopes Neto, tinha ali O Balaio, por exemplo. Mas como se dança? Como se canta? Ninguém sabia e fomos descobrir isso na memória das pessoas comuns. Isso ocorreu também com O Pezinho e tantas outras. O que eu quero dizer com tudo isso é que não existe um gaúcho. Existem várias figuras representativas nesta concepção generalizada de gaúcho. Todas as influências étnicas, regionais e sociais vieram contribuir para a formação desses gaúchos. O homem campeiro não fala em monarca ou centauro. Talvez nem saiba o significado dessas palavras. Ah, o seu Centauro não mora aqui, não senhor. Deve ser de outro rincão (risos). Entende? Essas expressões e analogias são coisas de escritores que estiveram ou viveram no estado.
EC - Essa visão de gaúcho apregoada pelo movimento tradicionalista não seria muito conservadora?
Paixão - A tradição deve ser conservada, mas isso não significa que deva estagnar-se. Só que esta conservação deve ser feita com responsabilidade e documentação, e não com mentiras. Afinal, estamos falando de um movimento tradicionalista vivo e não de um estanque tradicionalista.
EC - Como o senhor vê as leituras estilizadas da dança e música gaúchas, fundindo-se com outras culturas?
Paixão - Ninguém pode interferir na liberdade criativa das pessoas. Isso seria fascismo. Só que é preciso ter cultura para desenvolver um trabalho que não perca a sua linha fundamental. Eu próprio já gravei com a Orquestra Sinfônica de São Paulo e o que se ouvia era um trabalho totalmente identificado com a cultura gaúcha. Sensibilidade e conhecimento são fundamentais para que não haja distorções. Tem gente que está brincando com o folclore e com o tradicionalismo. É o tal do cidadão que não tem o que fazer e de repente vira gaúcho. O que não se pode admitir é que algumas pessoas se fantasiem de gaúcho e tomem atitudes de palco e de composição completamente desvinculadas das características regionais, se dizendo tradicionalistas e autores de música gaúcha. É tchê isso, tchê aquilo. Entende? Estas manifestações surgem de exigências de mercado e da dificuldade de veiculação da arte verdadeiramente popular na mídia.
Fonte : Página do gaúcho
Caderno Cultura, Jornal Zero Hora
Sábado, 15 de maio de 2004.
Textos de
Luís Augusto Fischer (Escritor, professor de Letras da UFRGS) e
Eduardo Wolf (Professor de Letras do Colégio Leonardo da Vinci)
Cézar Braga Texto
http://www.sinprors.org.br/extra/set99/entrevista_1.htm
Fotos do Acervo de Paixão Côrtes
Acesse http://paixaocortes.blogspot.com.br
Blog Fronteira Gaúcha
1 comentário:
Paulo Ricardo, parabéns,
qualquer conversa com o Paixão é uma aula de cultura,
há muito mais para relatar do conhecimento dele, algumas considerações sobre a forma de dançar e dos concursos do RS atualmente, por exemplo estão muito bem relatadas, é uma pena que esteja tudo muito distorcido e as pessoas nem saibam mais porque hoje vestem uma bombacha ou dançam, declamam, etc...
abraço!
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