Muito se tem escrito sobre a Guerra dos Farrapos. Exaltam-se seus feitos, combates viram batalhas, que não as houve, e combatentes são guindados a heróis. Cantam-se façanhas enquanto agruras são apagadas da memória. Nesse processo, as grande ausentes são as mulheres.
Afora Anita, alçada a heroína de dois mundos, que sabemos da atuação feminina na guerra?
Como viveram nos 10 anos de saques, incêndios e mortes?
Pesquisas em arquivos e em jornais da época apontam para grupos femininos distintos, não raro acumulando atividades, como escravas hábeis em costura e bordado; fazendeiras substituindo o administrador tombado, liberando gado mediante recibo ou vendo o rebanho espoliado. Vivandeiras acompanhavam seu homem na retaguarda, acudindo feridos em combate. Imigrantes alemãs afirmaram o minifúndio como sistema econômico produtivo, enquanto barqueiras comandavam frágeis embarcações com produtos agrícolas para o mercado de Porto Alegre. A Santa Casa de Misericórdia tornou-se estabelecimento patronal ao gerir a equipe de mulheres (gerente, porteira, madrinhas, amas de leite, criadeiras) encarregadas da criação de infantes abandonados na roda dos expostos por conta da penúria da guerra civil.
A imprensa, desde 1828, debateu ideias conservadoras versus iluminismo europeu. Também publicou anúncios de "aulas" nas quais mestras ensinavam tradicionais "prendas domésticas" e matérias humanistas. Maria Josefa Pereira Pinto reuniu as duas tarefas: entre seus alunos teve o mais tarde famoso gramático Antônio Álvares Coruja, e em 1833 foi a primeira mulher proprietária de jornal, o semanário Belona, no qual atirava "sátiras incisivas e eruditas" para ridicularizar os "pretensiosos políticos" .
Em 1838, os farroupilhas decretaram a universalização do ensino na República Rio-Grandense, medida louvável que a penúria da guerra não permitiu concretizar. Em 1842, Caxias convocou um exército de 12 mil homens e, para prover esses homens de uniformes, apelou para as mulheres da província que soubessem costurar - tarefa gigante, costura a mão, pois a máquina Singer ainda estava por ser inventada.
A guerra deu ensejo à intelectualidade de um punhado de mulheres, que responderam cada uma à sua maneira, criticando os líderes. A cega Delfina Benigna da Cunha fulminou, em glosa, o chefe farroupilha: "Maldições te sejam dadas / Bento infeliz desvairado / No Brasil e em toda a parte / Seja teu nome odiado".
Nísia Floresta, nordestina vinda ao Sul em 1833, cantou a beleza e a fartura das chácaras-cinturão verde de Porto Alegre: frutos europeus, vinhas, pêssegos aveludados, saborosos damascos, rubra maçã, roxa cereja e linda amora - fartura que, até 1835, garantiu "tudo quanto o homem pode desejar sobre a terra, paz, abundância, simpleza e a doce influência de um clima sadio". Para combater a submissão feminina ao mantenedor, traduziu ousada obra feminista, Direitos das Mulheres e Injustiça dos Homens. Nela sobressaem duas reivindicações basilares para a História de Gênero: o direito ao estudo e a um trabalho remunerado, que capacitem a mulher a gerir sua vida, pois ela é potencialmente capaz de advogar, de ministrar justiça, de exercer ensino universitário. A imprensa silenciou, como forma de minimizar os efeitos da ousadia.
Ana de Barandas, porto-alegrense solidária na busca por mais direitos, questiona os homens conservadores: "Tendo nós os mesmos sentidos e igualmente uma alma espiritual, por que não fazer uso desse admirável presente recebido do Criador?".
Seu inconformismo e suas denúncias tiveram eco no esforço pela formação de um pioneiro Partido Político Feminino, movimento liderado por mulheres da elite, como Maria Josefa Fontoura Palmeiro, com trânsito em ambas as facções políticas em luta. Por fazer propaganda pela causa farroupilha, foi presa, interrogada e expulsa de Porto Alegre. Essas mulheres endossavam o partido dos maridos, embora Ana de Barandas, em seu livro O Ramalhete (1845), argumente que a mulher deva ter vontade própria para abraçar a causa que ache mais vantajosa.
Ana é vibrante ao denunciar saques e mortes. O sítio natal, "outrora morada do prazer", converteu-se "em perfeito esqueleto", destruídos "os bosques, pomar e habitações e exilados seus habitantes".
Por tanto sofrimento, ela acusa as lideranças. Os políticos, afirma, "douram a pílula e fazem-na ao paladar dos gulosos que, sentindo o doce, são capazes de engolir o maior veneno (...)
Os maliciosos, servem-se do lindo manto do patriotismo para cobrirem seus malignos projetos". O sofrimento de Ana espelha o do universo feminino, e ela o resume numa frase tristemente atual, embora decorridos 170 anos:
"O político tem a alma danada. Em vez da verdade, diz lindas coisas para embalar o povo incauto".
Tambem temos as Vivandeira em francês significa “Vivandière”, ou seja, a mulher que vende ou leva alimentos seguindo as tropas em marcha.
Elas começaram atuar na época das guerras e movimentos armados dos exércitos de Napoleão onde essas mulheres seguiam em marcha acompanhando seus cônjuges, parentes e amantes servindo-lhes com alimentos, água e munição.
Nesses anos insanos da Guerra do Paraguai, 11-11-1864 até 01-03-1870, que foi um verdadeiro genocídio essa campanha bélica onde, na faina de matar, morrem mais de 300.000 pessoas, a presença das Vivandeiras foi marcante, pois seguindo na retaguarda do exército serviam com mantimentos nos acampamentos sendo cozinheiras além de outros afazeres que veremos no decurso deste texto.
Abro um espaço aqui para registrar o nome de pessoas, homens, da nossa comunidade que fizeram parte dos contingentes ligados às guerras e revoluções. Na Revolução Farroupilha participaram estes bossoroquenses: Florêncio Sanábria Flores, João Cunha da Silveira, Jacinto Antunes Pinto, José Fabrício da Silva, José Joaquim Assunção.
Cabe ressaltar que na Guerra do Paraguai participaram os bossoroquenses: Elisiário Nascimento, João Luiz Nascimento, José Gonçalves de Oliveira e Luiz Gonzaga Nascimento.
Daqui de Bossoroca na Revolução Federalista participaram João Cunha da Silveira Sobrinho, Jacinto Martins da Rocha, João Luiz Nascimento, José Francisco Ferreira, José Martins Pinto, Manoel Antunes Ferreira (irmão do meu tataravô) e Porfírio José Pereira.
Na Coluna Prestes, que eu lembro agora, participaram Gaspar Nascimento, Laurindo Pinto, Luiz Fagundes e Alfredo Ferreira Aquino, que era comerciante em Bossoroca e na Coluna foi enfermeiro. Na marcha em que ele fez junto à Coluna, ao longo do percurso, o senhor Alfredo Ferreira Aquino teve 722 (setecentos e vinte e dois) afilhados.
Já na Segunda Guerra Mundial os bossoroquenses que foram para a Itália são estes: Cícero Cavalheiro, Elautério Melo, Euclides Antunes Pereira, Eugenio Martins e Nicanor Rodrigues.
Voltando-me às Vivandeiras, elas cuidavam das roupas dos militares, eram enfermeiras que acudiam os feridos, providenciavam remédios basicamente da flora, amparavam os doentes, satisfaziam desejos sexuais. Outras, mesmo contrariadas, iam na vanguarda pois forjaram-se revolucionárias que pegavam em armas lutando de igual para igual e, muitas vezes, prestavam conforto moral e ainda choravam a morte de seus companheiros e amigos nos palcos formidáveis (espetáculos de horror) dos campos de batalha.
Imaginemos muitas Vivandeiras ainda meninas, recém-adolescentes, que entregaram-se aos oficiais de mais idade. Outras sofreram estupros, abusos, desprezos de toda ordem e outras ainda eram prostitutas e não tinham em contrapartida o mínimo respeito à sua dignidade e seus valores internos como ser humano dotado de corpo e alma devido a cultura e o modelo patriarcal da época.
Apesar de tantas Vivandeiras ter ficado no anonimato na Guerra do Paraguai, eis aqui algumas que figuram com seus nomes na história: Maria Curupaiti, Joan Rita das Impossíveis, Florisbela, Ana Néri, Sargenta Jovita Alves Feitosa, Maria Vareta, Maria Francisca da Conceição.
Durante a Coluna Prestes que começou na missioneira São Luiz Gonzaga – RS em 28 de outubro de 1924 e estendeu-se até 03 de fevereiro de 1927 na Bolívia, nessa longa marcha sob o comando do “Cavaleiro da Esperança”, Luiz Carlos Prestes num percurso de 25.000 km, sabemos que, por longo período, houveram presenças femininas nessa jornada onde também não tinham pleno reconhecimento pelo comando da tropa. Sabe-se que em vários casos eram as Vivandeiras que faziam o serviço hediondo, horrendo, de exterminar com os prisioneiros geralmente pela degola. Algumas vezes como prêmio algumas dessas “coitadas” numa espécie de sorteio eram “premiadas” para uma noite de sexo com o inimigo para, depois, num descuido matá-lo a golpes de arma branca.
Estas foram algumas das Vivandeiras da Coluna Prestes: Ai Jesus, Albertina, Amália, Anna Alice, Alzira que tinha o apelido de “Generala”, Cândida, Chiquinha, Cara de Macaca, Chuvinha, Ernestina, Emilia Dias, Elza, Etelvina, Eufrásia, Gaúcha, Gorda, Hermínia, Honorata, Isabel Pisca-Pisca, Lamparina, Letícia, Maria Emilia, Maria Revoltosa, “Onça”, Ótima, Santa Rosa, Tia Manoela, Tia Maria, Xatuca.
No chamado sistema da ordem patriarcal as Vivandeiras eram menos conceituadas que as chinas que desconsiderou, interditou e marginalizou a importância e a valorização do papel dessas mulheres no apoio às bases de sustentação das guerras. Basta vasculhar a história e vamos notar um silêncio, um hiato onde as Vivandeiras eram vistas como seres de posição inferior, marginal e raramente vamos encontrar honrarias, medalhas, estátuas, referências dignas de reconhecimento nos anais da história sobre a missão que elas tiveram no teatro das batalhas onde muitas viveram atrocidades de toda ordem, até mesmo inanição (debilidade extrema pela falta de alimentação), morreram sendo parceiras incondicionais nessas causas doloridas que a guerra, na sua força motriz, fez e trouxe consigo.
O fato é que as Vivandeiras que foram andarilhas, esposas, mães, comerciantes, guerreiras, enfermeiras, companheiras, amantes, prostitutas, muitas vezes consideradas más e inferiores lutaram no front como combatentes de guerra, sentiram no corpo e na alma as agruras da luta sem piedade e sem dó nos combates encarniçados, foram destemidas, corajosas, determinadas, tiveram bravura, abnegação e heroísmo. Elas viveram hostilidades e crueldades e sentiram provações físicas e psicológicas. Muitas delas sabe-se delas apenas o apelido, outras ficaram nas entrelinhas, no anonimato e morreram no esquecimento salvo raríssimas exceções. Este assunto serve para uma larga e consciente discussão, carece de mais pesquisas e justiça com bastante aprofundamento, pois são merecedoras de uma epopéia pelo protagonismo feminino.
Fonte: Rio Grande Antigo