Uma geração que se debate para encontrar seu lugar em CTGs está colocando o tradicionalismo diante de uma encruzilhada
Mais do que resgatar a dança, o CTG 35 procura que jovens retomem o gosto por cultivar as tradiçõesFoto: Adriana Franciosi / Agencia RBS
Criados em um Rio Grande do Sul urbano, moderno e plural, jovens tradicionalistas querem participar do movimento, mas sentem-se sufocados por um apego a valores e normas inflexíveis nos quais já não enxergam sentido. Confrontada com essa geração, a patronagem do gauchismo vê-se diante do dilema de manter as regras intocadas, em nome do culto ao passado, ou abrir a porteira para a renovação, garantindo que o tradicionalismo tenha um futuro.
Esse mal-estar fez uma de suas aparições mais notáveis em maio, quando Jean Diniz, 25 anos, praticante da chula desde a infância e jurado das principais provas da modalidade no Estado, remeteu uma carta à cúpula do MTG para cobrar um posicionamento em relação à juventude. Em 26 páginas, fez um desabafo e apresentou 29 questões, abordando temas como o espaço para o pensamento livre e para a diversidade sexual dentro do tradicionalismo. E não obteve resposta convincente, na visão dele.
Ao longo de um mês, ZH conversou com Diniz e com outros 40 jovens tradicionalistas, no Interior e na Capital, para entender como eles estão se relacionando com o movimento. São guris e gurias que se acostumaram a ver o tradicionalismo aparecer no noticiário envolvido em polêmicas, quase sempre por erguer uma barricada entre os CTGs e os valores, ideais e gostos contemporâneos. Praticamente todos esses jovens revelaram forte descontentamento com a rigidez de regras para fazer parte dos CTGs e também insatisfação com a impossibilidade de debater temas da atualidade.
O movimento é dividido informalmente em três eixos: artístico e cultural, campeiro e musical. Eles são atrativos para muitos jovens - mas o pacote integral do tradicionalismo nem tanto. Por isso, reúnem hoje uma gurizada que participa do que quer e ignora o que não quer, pela via da distância e do silêncio.
- Muitos grupos criam dançarinos, mas não tradicionalistas. Não têm o tradicionalismo na essência - afirma Diego Müller, 32 anos, instrutor de dança e compositor de música gauchesca.
Ironicamente, o mesmo movimento tradicionalista que hoje não encontra lugar para a juventude foi criado por um grupo de jovens. Entre eles estava João Carlos Paixão Côrtes, um dos responsáveis pela carta de princípios que serve de bíblia para as entidades. Para o fundador, os CTGs são clubes com regras próprias. O tradicionalismo seria outra coisa, que faz parte da cultura de cada um. Paixão Côrtes lembra que o movimento que ajudou a criar engloba hoje 4 mil entidades tradicionalistas espalhadas pelo mundo. Alerta que serão os jovens de hoje que administrarão essa herança. O que eles entenderem por tradição pode moldar o movimento.
- Tradição não se compra e não se vende, se sente - diz Paixão Côrtes.
Manoelito Savaris, presidente do MTG, discorda do afastamento dos jovens. Diz que somam 400 mil, metade do público dos CTGs, e que são eles os primeiros a exigirem as regras.
Entre as normas rígidas e a necessidade de atrair os jovens
São as atividades artísticas as que mais têm atraído os jovens para o CTG, com dezenas de apresentações de invernadas em concursos de dança. Neste meio, há muitos homossexuais.
Entre eles, um jovem de 26 anos que entrou para o CTG aos quatro. Animado em levantar a bandeira da diversidade no tradicionalismo, aceitou dar entrevista e ser fotografado. Contou que todos sabiam da sua opção no grupo e acreditou que não houvesse impeditivo quanto à exposição. Precisava, entretanto, da autorização da patronagem. Trinta minutos antes do início do ensaio, na noite de uma quarta- feira de julho, a reportagem chegou ao local. Sem trocar qualquer palavra, a mulher do patrão defendeu-se:
- Nós não temos nada a declarar sobre este assunto. O que ele faz fora daqui é problema dele.
O dançarino recuou. Pediu para ter o nome preservado e implorou para que não fosse divulgado o nome do CTG.
- Estamos ensaiando para o Enart (Encontro de Artes e Tradição Gaúcha) e já tiraram pontos do nosso CTG por vários motivos, muito mais simples do que este. Não quero prejudicar o grupo. Poderia soar como uma afronta ao MTG - desculpou-se o rapaz.
O episódio fez com que ZH fosse convidada a se retirar do ambiente. Este é um tema espinhoso e inevitável em uma geração com plena liberdade de escolha. A história do rapaz é um exemplo. Aos 19 anos, descobriu que preferia meninos a meninas, sexualidade que aflorou dentro do grupo de dança, atiçando a ira do instrutor.
- Ele implicou com o meu jeito. Disse que eu não dançaria no próximo rodeio. Ele não me falou o motivo da expulsão. Só disse: "A porta da rua é a serventia da casa" - lembra o rapaz.
Integrantes da invernada do 35 CTG estão contentes com a flexibilização
Foto: Adriana Franciosi
O historiador Tau Golin crê que o autoritarismo e as regras dificilmente serão mudadas, mas que não se pode desprezar a força da vida.
- Eles tiram brinco para entrar no galpão, ajeitam o cabelo como quer o regulamento, mas quando se abrem para o mundo, vão para a faculdade, chega o conflito de identidade. É difícil para um jovem defender como herói um senhor de escravo e achar que o latifúndio é o ambiente dele - argumenta.
O pesquisador alerta que instigar valores arcaicos pode fazer com que o jovem perca o referencial de sensibilidade para compreender o mundo:
- Este sujeito prega a violação do outro no campo afetivo, no comportamento social, nas roupas que veste, no estilo físico. E, de repente, o próprio filho dele é isso. É uma cultura que contribui para a xenofobia. São os próprios pais preparando um rodeio para o sacrifício dos filhos.
Meio-termo para ser mais atrativo
Maria Angélica Saraiva, 22 anos, diretora do Departamento Jovem do MTG, preocupa-se com a diminuição de concorrentes em concursos de prendas e peões a cada ano. Ela acredita que falte incentivo e oportunidades para eles dentro dos CTGs:
- Para atrair mais jovens, deveria havr um meio-termo: o MTG dar o braço a torcer e diminuir as normas e os jovens se esforçarem para entender por que elas existem.
Filho do presidente do MTG, Tomás Savaris, 30 anos, é músico e trabalha na harmonia da dança na invernada do CTG Campo dos Bugres, de Caxias do Sul. Foi ele quem levou o pai para o tradicionalismo, em 1991, quando ingressou no movimento e começou a participar dos grupos de dança. Tomás diz que a rigidez das regras ocorre mais nas competições.
- Dentro do CTG é bem tranquilo. É só se vestir da forma tradicional. Bombacha, camisa, bota e guaiaca são o suficiente. Exagero mesmo é nos concursos. Mas são os próprios participantes que pedem que seja assim. O concurso não é a coisa mais saudável do meio - diz Tomás.
Percebendo o afastamento dos jovens dos galpões, o CTG 35 - primeiro do Estado e o mais tradicional - montou um plano de ação para reverter o cenário. O primeiro passo foi flexibilizar as regras e desistir de concorrer no Enart, desde 2012, devido ao alto custo para os integrantes.
Ter uma invernada competitiva pode custar até R$ 10 mil. O valor é dividido entre os integrantes, cerca de R$ 1,7 mil para cada, em média.
Um dos responsáveis por atrair mais jovens ao CTG é Márcio Albrecht, 30 anos:
- Antigamente tu fazias um concurso de prenda e peão e não precisava correr atrás de gente, enchia. Hoje, ocorre de os CTGs terem de nomear peão e prenda, quase que obrigar, porque não tem interessado.
Os primeiros sinais do resgate vieram este ano. Depois de uma década, houve três concorrentes nas categorias de peão e prenda no concurso interno. Tornar o jovem tão cultural quanto artístico é o desafio da entidade, diz a capataz cultural, Gleicimary Borges da Silva:
- Se pegar um integrante das invernadas, desses que vão para o Enart e têm pilchas lindas, e perguntar a história do Rio Grande, receio que eles não consigam responder.
Mudança em busca de conforto no CTG
Henrique Arruda Rodrigues, 22 anos, é o Peão Farroupilha do 35. Ele se dedica ao tradicionalismo desde 2005 e critica o fato de não poder ficar mais confortável no galpão:
- Tu trabalha a semana toda, se sente cansado. Gostava de ir ao baile, sentar no canto e ficar assistindo, não vinha para dançar. Não queria vir de bota, queria colocar uma alpargata, que é mais confortável, mas não podia entrar. Aqui dentro hoje pode, mas a maioria dos CTGs não deixa.
Para ajudar no conforto, permitem que ensaiem de tênis e sem os trajes completos. Mas apesar do discurso liberal, Gleicimary enxerga um decote mais ousado e avisa:
- Vou lá falar com a menina. Ela está com uma blusa muito aberta. Não pode mostrar tanto o colo assim.
E é a indumentária que está entre os temas mais polêmicos do CTG. Para designar o que pode e o que não pode, existe um manual de 15 páginas só para a pilcha. Mesmo mais flexível, o 35 mantém proibições. Saia curta, decote, barriga de fora, nem pensar.
Nos bailes, em vez de constranger o convidado, pedindo para se retirar, existe uma arara à disposição com vestidos para emprestar.
- Isto faz parte da nova mentalidade do CTG 35, de amenizar as regras para que não cheguem a ferir tão diretamente o jovem ao ponto de se sentir constrangido e com vontade de se afastar do movimento - explica Adileny Meneghetti, 1ª prenda.
Carolina Pizzato é uma das que foram atraídas pela nova era do 35. Tem 27 anos e entrou em fevereiro para o grupo de dança, atividade da qual estava distante desde a adolescência:
- É um hábito que toma muito tempo. Tem muitas regras e eu não acho elas ruins, só que tu tens de estar disposta. Da primeira vez, estava com um piercing na boca, aos 15 anos. Eu não queria bater de frente se alguém me impedisse. O cabelo dela, metade raspado, é também polêmica.
- Descobri que não posso raspar meus cabelos de novo. Eu aceito, pois quero continuar dançando. Só que é isso que eu acho besta - disse.
O machismo, presente em detalhes, incomoda. Formada em Arquitetura, Carolina lembra de uma reunião para decidir como seriam feitos os carros de uma apresentação. Só os homens foram convidados.
- Dei o palpite de que daria para fazer de PVC. Aí, eles me olharam assustados, como se fosse uma grande descoberta. Quem sabe no dia que tiver um almoço vão me chamar na cozinha para ver como faz o arroz e eu não tenho ideia de como fazer, mas sei montar a droga do carrinho - brinca Carolina.
Ela lembra que aquele não é lugar para contestação, mas defende que deveria ser:
- Daqui a pouco todos vão morrer e os novos vão ficar aí. Vai minguando até que acaba.
Jovens que se interessam por hábitos, mas sem enlaces
Gabriele e Luiz Gustavo mantêm alguns hábitos tradicionalistas
Foto: Adriana Franciosi
Gabriele Endres, 15 anos, laça desde os 12, quando ganhou seu primeiro cavalo: Farroupilha de Santa Rafaela, o pepino. Juntos, já ganharam três troféus. Gosta do tradicionalismo, mas não faz questão de estudá-lo. Cultua costumes até certo limite. Está no laço, atividade campeira tipicamente masculina, por esporte e vício. Adepta da bombacha feminina, não tem vestido de prenda. Quanto a isso, não enfrenta problemas nos rodeios que frequenta, onde a vestimenta é permitida. Nem da música tradicionalista é muito chegada.
- Eu gosto mais de sertanejo, eletrônica. Acho a música tradicionalista meio de velho - diz Gabriele.
Luiz Gustavo dos Santos Fagundes tem a mesma idade de Gabriele e, apesar de filho de patrão de piquete, também não está interessado em se aprofundar nos causos dos gaúchos do passado. Gosta mesmo é de tropear. Com nove anos, ganhou um cavalo do pai. Queria ser laçador e sonhava em competir em rodeios. Orgulha-se agora dos 20 prêmios já conquistados com a atividade. Nas competições, veste-se de peão seguindo as normas à risca e, na hora de armar as laçadas em direção ao gado, no lombo do seu companheiro preto 270 pampeiro, incorpora o homem do campo.
- Fico focado. Não escuto nada na minha volta e me sinto como um homem de antigamente - diz o menino, que mora em Canoas e tem uma vaquinha de mentira no pátio de casa, onde treina as laçadas.
Assim como os integrantes da dança, Gustavo também se queixa da fortuna que despende para se manter dentro das normas. Para ele, criado na cidade, é ainda mais caro preservar o contato com o campo. Só para manter o cavalo na hotelaria, são R$ 400 mensais.
O pai de Gustavo, Lúcio Mauro, 43 anos, faz parte do MTG, coordenando o concurso estadual de chula. Ele mesmo conta que a quantidade de regras motiva o afastamento do jovem. Em casa, tem um exemplo. Há alguns anos, surgiu a Federação Gaúcha de Laço, em oposição ao calhamaço de regras do MTG, tornando os rodeios menos exigentes. E Gustavo associou-se à nova entidade, disputando apenas os campeonatos organizados pela federação.
Roanita Saionara Rodrigues Reis
19 anos, prenda da 9ª Região Tradicionalista Cruz Alta, entre 2009 e 2010, e universitária
"Nasci no movimento tradicionalista, fui prenda regional entre 2009 e 2010, dancei 12 anos e fiquei surpresa com a forma como o MTG, regiões tradicionalistas e entidades estão reagindo ao casamento gay dentro do CTG. O MTG, que é o maior movimento organizado do Mercosul, fala em inclusão social, mas que inclusão é esta em que, na primeira oportunidade que se tem de mostrar que somos a favor da inclusão, estamos excluindo as pessoas do meio tradicionalista?
Cada prenda, para concorrer na fase regional da Ciranda de Prendas, tem que fazer palestras e discursos falando de inclusão social, então estávamos pregando moral de 'cuecas'. Falamos uma coisa e, na hora de fazer, praticamos outra? E agora lhes pergunto: como ficam os casais homossexuais dentro das invernadas? O MTG vai deixar de fazer 'inclusão social' e vai passar para 'exclusão'?
O mundo tradicionalista é recheado de interesses, totalmente capitalista. As normas são apenas para alguns. A inclusão social fica mais no discurso de atrair crianças de baixa renda, que não têm como pagar suas despesas, e pelo fato de o MTG obrigar as invernadas, colocando essa tarefa como condição para se dançar o Enart. Temas mais polêmicos não são debatidos. Estão cada vez afastando mais as pessoas.
Fora as atividades artísticas, não existem atividades para aproximar os jovens ou beneficiá-los. A maior parte das pessoas que estão no CTG crescem dentro dele. Os jovens que buscam informações não voltam. Se assustam com tantas regras.
Eu sonhava em ser prenda. Fui prenda da minha entidade desde os quatro anos, em várias categorias. Conquistei na minha região e, depois, o sonho era representar o Estado, mas desisti. Fiquei em segundo lugar na 9ª RT em 2009 e fui me afastando. Foi natural, um choque muito grande de pensamentos."
Por Kamila Almeida Zero Hora Dominical
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