quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Aproximação ao Conceito de Chamamé


Ao falarmos de “nosso patrimônio cultural correntino”, se acende a chama de nossos sentimentos mais profundos. Se despertam as luzes do sendero milenar de nossas tradições, e fundamentalmente, originadas na matriz da cultural religiosa. E é neste ‘meio’ que se move a expressão cultural mais autêntica, “O Chamamé“.

A expressão cultural musical original do homem é o canto. Aqui se unem os bens sonoros essenciais, “a palavra e a melodia” – sucessão temporal de sons de diferentes alturas, dotados de sentido musical. E o ritmo primogênito, também se origina no interior do ser humano, desde as próprias batidas do coração.

A palavra de cada cultura, conforma idiomas que traduzem o mais fiel reflexo objetivo delas. Com sons labiais, guturais, nasais e guto-nasais, e o sotaque implícito dos sentimentos e pensamentos. Esses vão criando a magia da eloquência, uma só frase soa a melodia, e uma só cadência e acentos de pronúnciação nos permite adivinhar a origem da pessoa que nos fala. Então também, cada sílaba é uma nota de um tom, e cada palavra, um arpejo, ninando nos silêncios da alma. Creio que o homem é uma pilha de saudades. As nostalgias que a vida lhe proporcionou nos caminhos da eternidade. E uma gratidão expressada sinceramente desde suas originais orações cantadas e em suas “rezas danças” ou “ñemboë yeroquí”, como era o “chamamé” originário de nossos guaranís correntinos.

A religião guaraní diz que: “O primeiro que Deus criou foi o idioma”, Ñeë ou Ñeëng, “porção divina da alma”, ou “palavra alma”. Esta linguagem, futura essência da alma, enviada aos homens, participa de sua divindade. E logo cria “O amor ao próximo” e “os hinos sagrados”.

Assim “ñeë”, com acento nasal, significa “idioma”, “palabra”, e na linguagem religiosa, “palavra-alma”. “Ñe’ë y”, segundo o estudioso antropólogo León Cadogan em seu livro “Ayvú Rapyta” (1992), é o espírito que os deuses enviam, para que encarne na criatura próxima a nascer.

“Os hinos e orações, são a única fonte fiel para a reconstrução da religião indígena”. “Para o guaraní, a palavra é tudo. E tudo para ele é a Palavra”. Assim sintetiza P. Bartolomeu Meliá, um dos mais prestigiosos estudiosos da cultura guaraní, analisando seus mitos, “cantos” e rituais. (El Guaraní – Experiencia Religiosa – 1.991), “a palavra guaraní se diz e se faz. Os caminhos da palavra, seus sacramentos são “O canto e a dança. (seus ñeë mboë yeroquï)”.

O chamamé, era originalmente um “ñeë mboé yeroquí”, que realizavam especialmente em gratidão à “Tupã”, Deus da Chuva. Diferentes antropólogos, estudiosos desta cultura, concordam em afirmar que os cantos apresentam categorias bem diferenciadas, como os “Guaú eté”, “Verdadeiros Autênticos Cantos Sagrados”, também chamados “purahei”. Os Guaú ai” (pequenos cantos sagrados) e os “coti-hú”, que poderiam ser escutados por todos, inclusive por pessoas estranhas.

Os “guaúete” ou “verdadeiros cantos sagrados”, também conhecidos como “purahei”, só se acompanham com o “mbaraca” – maráca ou sonajera (chocalho). O mesmo é executado pelo “pajé” guaraní, com sua mão direita, e o “takuapú” – instrumento musical de taquara, espécie de bastão de ritmo, que é utilizado pelas mulheres, também a mão direita – “No caso dos “guaú”, o canto, a música e a dança, forma um todo invisível”.

Hoje em dia, é demonstrado assim, até nos vídeos filmados de suas “danças do amanhecer” e do “atardecer”, e na trivialidade “mbya guaraní”, situada na atual província de Misiones – Argentina, do conhecido Cacique o “Tubichá” que adotou o nome de Lorenzo Ramos”.

Tudo até aqui reunido pelos mais destacados estudiosos desse tempo, e de minhas visitas a grupos e trivialidades guaranís. Isso nos demonstra a profunda religiosidade, intimamente relacionada a sua “palavra – alma” – seus cantos sagrados – –guaúeté-), e suas rezas-danças – ñeë mboé yerokï-.

E esta forma de vida, era compartida naturalmente em grupos familiares, que formavam suas “tabas” ou “aldeias”. Estavam distribuídas em diferentes parcialidades, associados e afinados em crenças, costumes e tradições, e com uma estreita relação de parentesco. Estes assentamentos eram conhecidos antigamente com o nome de “guara”, nome que determinava “uma certa região – normalmente delimitada por rios”; guara é um termo reunido pelo próprio P. Antonio Ruiz de Montoya-.

Creio que esta é a origem do homem “guaraní” – de “guara”, unidade social e geográfica. Existem muitos exemplos em toda a extensão das culturas guaranís que apoiam essa tese. (ver: “guara”, adeia e rio de Habana – Cuba). Guararé, antigo “guara”. Distrito sul de Panamá. Guaray, “arroio” dos “guara”, no departamento de San Javier, Misiones, Argentina.

Anselmo Peralta e Tomás Osuna, em seu dicionário da língua guaraní, editado em 1952, traduz assim esta palavra “guará”, prefixo, origem – procedência – substantivo – casta – raça. Quis mostrar até aqui, como a religiosidade, pautava toda sua vida e todas suas expressões culturais, assim como seus “guáu” e seus “ñeëmboé yeroquï”.

Seus Ñeë Mboé Yeroquï, como aqui em Corrientes seus “Chamamé”, (que se realizavam nos dias de chuva), e seus “sapukái” (que se realizavam nos dias de eclipse). E o natural de sua prática, somente podia desenvolver-se no âmbito intimista familiar de seus pequenos “guaras”.

Por todo citado até aqui, ressaltam os valores essenciais, os nomes superficiais, correspondentes ao nosso chamamé, estão expondo um desconhecimento de seus fundamentos de vida e da etimologia da linguagem religiosa, da cultura guaraní correntina que originou o mesmo.

Pelo contrário, também até hoje existem nas ruínas dos povos jesuíticos, talhados nas pedras de seus grandiosos templos, anjos tocando as “mbaraca”, que era o instrumento religioso guaraní por excelência. Com este instrumento dirigiam seus “ñeëmboé Yeroquí” (rezas e danças guaranís), seus antigos sacerdotes, ou “avá payé”, abrindo perguntas sobre uma espécie de “ecumenism” antigo da época misional.

Das “Rezas – Danças”, também já conta os livros do antigo testamento, (cento e cinquenta salmos cantados, com acompanhamento de arpas, flautas, salterios, (um dos instrumentos que executava o Padre Antonio Sepp, quando chegou no ano de 1691 a Yapeyú), tambores, címbalos e trompetas). Também até hoje, se dança na Catedral de Sevilla, no dia de “Corpus Cristi” o baile de “Los Seises”, mostrando através do tempo uma forma de gratidão a Deus, em culturas distintas e distantes.

Até aqui minhas palavras para fundamentar meu desacordo com tantas definições que considero equivocadas. Demostrando além do mais, um desconhecimento mínimo das condições que rodeam, sustentam e enriquecem uma cultura expressada através de um antiguíssimo e sagrado linguagem religioso. Tudo isso, para nomear o mais querido, como é este gênero musica tão correntino – “nosso milenar chamamé”.

Por Gonzalo “Pocho” Roch
Tradução Igor Alecsander

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