Rui Barbosa
“Uma impregnação tal das consciências pela mentira, que se acaba por se não discernir a mentira da verdade, que os contaminados acabam por mentir a si mesmos, e os indenes, ao cabo, muitas vezes não sabem se estão, ou não estão mentindo.” – Rui Barbosa
Leia abaixo três breves conferências e um discurso do escritor e orador Rui Barbosa. Instigantes e reflexivos, boa leitura!
O bem e o mal
O mal nunca venceu o bem, senão usurpando a este o necessário para o iludir, o arredar, o adormecer, o fraudar, o substituir, o vencer.
Se a injustiça, a mentira, o egoísmo, a cobiça, a rapacidade, a grosseria d’alma, a baixeza moral, a inveja, o rancor, a vingança, a traição, aparecessem nus e desnudos aos olhos do indivíduo, aos olhos do povo, aos olhos da sociedade, aos olhos do mundo, ninguém preferiria o mal ao bem, e o bem não se veria jamais desterrado pelo mal.
Mas o mal, e sobretudo o mal político, a terrível avariose brasileira, é essencialmente falso, falsídico, falsificador e refalsado. Sutil, sonso e sotrancão, alonga a cara triste e severa, baixa o olhar incerto e divergente, engrossa o falsete, azeita a rispidez, varia o furta-cor da palavra insidiosa, fala todos os idiomas da mentira, pratica a sedução com os pequenos, com os grandes a baixeza, a arrogância com os humildes, com os poderosos a servilidade, envolve nas atitudes da nobreza os sentimentos da prostituição, e, professando não denotar nunca o que sente, não mostrar jamais o que faz, o chocalho nas mãos para a impostura, nos ombros, até a barba, a capa da traição, na cabeça, desabado para o rosto, o feltro das aventuras, com botas de sete léguas, foge do merecimento, da justiça, da honra, da lealdade; e, se pudera vender-se a si mesmo, atraiçoando a própria natureza, a si mesmo se vendera, como vendeu o Cristo para não desmentir a fatalidade da sua sina. (1)
O reino da mentira
Mentira toda ela. Mentira de tudo, em tudo e por tudo. Mentira na terra, no ar, até no céu, onde, segundo o padre Vieira (que não chegou a conhecer o sr. Urbano Santos), o próprio sol mentia ao Maranhão, e direis que hoje mente ao Brasil inteiro. Mentira nos protestos. Mentira nas promessas. Mentira nos programas. Mentira nos projetos. Mentira nos progressos. Mentira nas reformas. Mentira nas convicções. Mentira nas transmutações. Mentira nas soluções. Mentira nos homens, nos atos e nas coisas. Mentira no rosto, na voz, na postura, no gesto, na palavra, na escrita. Mentira nos partidos, nas coligações e nos blocos. Mentira dos caudilhos aos seus apaniguados, mentira dos seus apaniguados à nação. Mentira nas instituições. Mentira nas eleições. Mentira nas apurações. Mentira nas mensagens. Mentira nos relatórios. Mentira nos inquéritos. Mentira nos concursos. Mentira nas embaixadas. Mentira nas candidaturas. Mentira nas garantias. Mentira nas responsabilidades. Mentira nos desmentidos. A mentira geral. O monopólio da mentira. Uma impregnação tal das consciências pela mentira, que se acaba por se não discernir a mentira da verdade, que os contaminados acabam por mentir a si mesmos, e os indenes, ao cabo, muitas vezes não sabem se estão, ou não estão mentindo. Um ambiente, em suma, de mentiraria, que, depois de ter iludido ou desesperado os contemporâneos, corre o risco de lograr ou desesperar os vindouros, a posteridade, a história, no exame de uma época, em que à força de se intrujarem uns aos outros, os políticos, afinal, se encontram burlados pelas suas próprias burlas, e colhidos nas malhas da sua própria intrujice, como é precisamente agora o caso. (2)
A lei de Caim
A lei de Caim é a lei do fratricídio. A lei do fratricídio é a lei da guerra. A lei da guerra é a lei da força. A lei da força é a lei da insídia, a lei do assalto, a lei da pilhagem, a lei da bestialidade. Lei que nega a noção de todas as leis, lei de inconsciência, que autoriza a perfídia, consagra a brutalidade, agaloa a insolência, eterniza o ódio, premeia o roubo, coroa a matança, organiza a devastação, semeia a barbaria, assenta o direito, a sociedade, o Estado no princípio da opressão, na onipotência do mal. Lei de anarquia, que se opõe à essência de toda a legalidade substituindo a regra pelo arbítrio, a ordem pela violência, a autoridade pela tirania, o título jurídico pela extorsão armada. Lei animal, que se insurge contra a existência de toda a humanidade, ensinando o homicídio, propagando a crueza, destruindo lares, bombardeando templos, envolvendo na chacina universal velhos, mulheres e crianças. Lei de torpeza, que proscreve o coração, a moral e a honra, misturando a morte com o estupro, a viuvez com a prostituição, a ignomínia com a orfandade. Lei da mentira, na falsa história que escreve, nos falsos pretextos que invoca, na falsa ciência que explora, na falsa dignidade que ostenta, na falsa bravura que assoalha, nas falsas liberdades que reivindica, fuzilando enfermeiras, atacando hospitais, metralhando povoações desarmadas, incendiando aldeias, bombardeando cidades abertas, minando as estradas navais do comércio, submergindo navios mercantes, canhoneando tripulações e passageiros refugiados nas lanchas de salvamento, abandonando as vítimas da cobardia das suas proezas marítimas aos mares revoltos e aos frios dos invernos boreais. Lei do sofisma, lei da inveja, lei da carniçaria, lei do instinto sanguinário, lei do homem brutificado, lei de Caim. (3)
A paixão da verdade
A paixão da verdade semelha, por vezes, as cachoeiras da serra. Aqueles borbotões d’água, que rebentam e espadanam, marulhando, eram, pouco atrás, o regato que serpeia, cantando pela encosta, e vão ser, daí a pouco, o fio de prata que se desdobra, sussurrando, na esplanada. Corria murmuroso e descuidado; encontrou o obstáculo: cresceu, afrontou-o, envolveu-o, cobriu-o e, afinal, o transpõe, desfazendo-se em pedaços de cristal e flocos de espuma. A convicção do bem, quando contrariada pelas hostilidades pertinazes do erro, do sofisma ou do crime, é como essas catadupas da montanha. Vinha deslizando, quando topou na barreira, que se lhe atravessa ao caminho. Então remoinhou arrebatada, ferveu, avultando, empinou-se, e agora brame na voz do orador, arrebata-lhe em rajadas a palavra, sacode, estremece a tribuna, e despenha-se-lhe em torno, borbulhando.
Mas o que ela contém, e a impele, e a revolta, não é cólera, não é destruição, não é maldade: é o poder do pensamento, a vibração da fé, a energia motriz das almas, esse fluido impalpável que se transporta nas ondas invisíveis do ambiente, e vai, por outras regiões, arder nos espíritos, fulgurar nas trevas humanas, abalar vontades, agitar indivíduos e povos, reanimados ao seu contacto, como os mais maravilhosos instrumentos da indústria, os teares, as forjas, os estaleiros, acordam ao influxo dessa eletricidade silenciosamente bebida, léguas e léguas daí, por um fio de cobre aéreo, nas quedas sonoras do rio. Enquanto, porém, essa transmissão imperceptível opera ao longe maravilhas, renovando a atividade às civilizações, derramando vida pela superfície da Terra, a correnteza precipitada, que acabou de enviar à distância essas descargas da grande força, volve, pouco adiante, ao remanso ordinário do curso, perdendo-se entre as devesas do monte e as alfombras da pradaria.
As revoltas da consciência contra as más causas, ainda contra as piores, não azedam um coração desinteressado. O meu tem atravessado as maiores procelas políticas, às vezes soçobrado, ferido, sangrando no entusiasmo e na esperança, mas sem fel. Não seria este novo encontro, embora duro e violento, com a mentira política, a velha corrutora dos nossos costumes, a sabida arruadeira das cercanias do poder, a pimpona rixadora do grande mercado, que me induzisse a esquecer, para com as pobres criaturas por ela contaminadas, a lição divina da caridade. Antes de político me prezo eu de ser cristão. Não sei odiar os homens, por mais que deles me desiluda. O mal é inexorável, pela consciência de ser caduco. O bem, paciente e compassivo, pela certeza da sua eternidade. (4)
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“Da vitória do bem não duvidei jamais, porque nunca me vacilou a crença na vossa justiça.”
– Rui Barbosa, em discurso “A mão do Senhor”
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(1) Rui Barbosa, Conferência na Associação Comercial do Rio de Janeiro, em 8 de março de 1919, e que se intitula Às classes conservadoras (Rui Barbosa, Campanha presidencial, 1919, p. 60-61).
(2) Rui Barbosa, Conferência proferida na Associação Comercial do Rio de Janeiro, em 8 de março de 1919, por ocasião da campanha presidencial em que teve como antagonista o senador Epitácio Pessoa. Rui venceu em todas as grandes capitais e cidades do Brasil. (Campanha presidencial, Bahia, 1921, p. 77-78).
(3) Rui Barbosa, Conferência em benefício da Cruz Vermelha dos Aliados, em 17 de março de 1917, no Teatro Petrópolis. (Conferência do senhor Rui Barbosa no Teatro Petrópolis, Londres, 1917, p. 5) .
(4) Rui Barbosa, (Discurso no Cassino de São Paulo, em 16 de dezembro de 1909, por ocasião da campanha civilista. (Excursão Eleitoral ao Est. de S. Paulo, 1909, p 93)
(5) Rui Barbosa, Discurso de 11 de agosto de 1918, agradecendo as festas do jubileu, após a missa campal na praça de S. Cristóvão. (Estante Clássica da Rev. de Língua Port., Rio, 1920, p. 198, vol. I)
Do livro “Antologia – Rui Barbosa”. [seleção, prefácio e notas de Luís Viana Filho]. Ed. especial/Saraiva de bolso. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012.
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Sobre o autor
Rui Barbosa (Rui Barbosa de Oliveira), advogado, jornalista, jurista, político, diplomata, ensaísta e orador, nasceu em Salvador, BA, em 5 de novembro de 1849, e faleceu em Petrópolis, RJ, em 10 de março de 1923. Membro fundador, escolheu Evaristo da Veiga como patrono da cadeira nº. 10 da Academia Brasileira de Letras.
Em 1870, formou-se pela Faculdade de Direito de São Paulo. Eleito deputado geral, fixou-se em 1879 no Rio de Janeiro, onde, a partir da proclamação da República, se tornou uma das figuras preeminentes da vida política do país. Foi o autor do projeto da constituição republicana apresentado à Assembleia Constituinte em 1890. Exilou-se na Inglaterra quando se instalou o governo ditatorial de Floriano Peixoto, e de lá enviou para o Brasil os artigos reunidos nas Cartas de Inglaterra (1896). De volta ao país, em 1895, foi eleito senador pelo estado da Bahia, cargo que ocupou até ao fim da vida.
Por sua brilhante atuação na Segunda Conferência Internacional da Paz, em 1907, ficou conhecido como “Águia de Haia”. Fundador da cadeira nº 10 da Academia Brasileira de Letras, distinguiu-se como grande orador e escritor prolífico. Escreveu um dos seus mais famosos discursos — Oração aos moços (1920) — como paraninfo dos formandos da Faculdade de Direito de São Paulo. Suas Obras completas, organizadas pela Casa de Rui Barbosa, chegam a 137 tomos.
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