Pajada, no original espanhol payada, é poesia pampiana. Improvisada em décimas, fala de campo e de temas sociais, com raízes na oralidade e carregada de opinião. No Rio Grande do Sul, foi difundida por Jayme Caetano Braun, que se tornou inspiração para um movimento pajadoril que cresce no estado.
CULTURA GAÚCHA, por Letícia Garcia
A pajada é tão sulina que, em 2015, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) elegeu-a como o primeiro Patrimônio Cultural Imaterial do Mercosul. No Brasil, é exclusiva do Sul, por onde se estende o pampa, que carrega uma cultura compartilhada pelos povos platinos. No Norte e Nordeste do país, existe o repente, que se assemelha mas traz características diferentes da pajada. “A pajada é sempre em décimas, são 10 versos com a seguinte estrutura de rimas: ABBAACCDDC, ou seja, são quatro rimas intercaladas. Os versos são todos setessilábicos, com acentuação na sétima sílaba tônica, uma redondilha maior. O primeiro verso a ser pensado é o último, para encerrar bem”, explica Pedro Júnior Lemos da Fontoura, professor de Literatura, músico e declamador premiado. Pedro é autor de diversas obras fonográficas e literárias, como o mais recente livro “Constelação de fonemas”, e é um experiente pajador, que já viajou a diversos países para divulgar essa arte.
MARTÍN FIERRO
O formato característico da pajada surgiu na Idade Média com o poeta Vicente Espinel, na Espanha. Na colonização, a pajada veio com os espanhóis e se estendeu até o Rio Grande pelos países vizinhos, onde passou por adaptações. A origem do termo não é bem certa. Pedro cita os escritos de Paulo de Freitas Mendonça em ABC do Gaúcho: pode ter vindo de “payo”, que identificava os habitantes de Castela, de “pago”, lugar onde se nasce, ou de “palla”, do quíchua para denominar cantorias em praças. “Martín Fierro” (1872), de José Hernández, é uma das maiores referências do gênero, que faz menção o tempo inteiro à figura do pajador, “o homem que canta livre”. “O ‘Martín Fierro é todo em sextilha, mas é como os seis últimos versos da pajada, numa estrutura próxima”, explica Pedro. No RS, existem textos escritos em décimas desde antes da Revolução Farroupilha — o professor cita o nome de Vicente da Fontoura. Mas a pajada pode ser até anterior a isso e não ter registros, devido à sua marca principal: o improviso na hora da declamação.
IMPROVISAÇÃO
“Para argentinos e uruguaios, a pajada é só o momento do improviso – a não ser que aquele improviso seja reescrito. É como se fosse a literatura do Ultrarromantismo, emoção pura. Eles não se permitem ajustes, porque seria trabalhar com a razão e trair a emoção do momento. Quando isso acontece, está se ‘escrevendo em décimas’, não pajando, apesar de ser a mesma estrutura”, conta Pedro. Nos encontros, comuns na Argentina e no Uruguai, as pajadas acontecem em duplas, um respondendo aos versos do outro, o que se chama “contraponto”. Em muitas apresentações, o público sugere na hora os temas a serem improvisados no palco. Apesar desses fatos, aqui no RS, popularmente, o termo identifica também o improviso individual feito em décimas, assim como os poemas escritos.
CANTAR OPINANDO
Acontecem outras mudanças na pajada ao se cruzar a fronteira. Nas apresentações dos vizinhos pampianos, o próprio pajador acompanha sua décima com o violão e improvisa cantando. Chilenos acrescentam outros instrumentos, cubanos incluem tambores. No RS, os pajadores são acompanhados por um guitarrero, no violão, em ritmo de milonga, e é só aqui que a improvisação é recitada. Uma característica comum, no entanto, é cantar livremente e opinando. Pedro destaca as marcas dos pajadores: “ter posições firmes, cantar para opinar, com uma intenção não apenas de fazer as pessoas se divertirem, mas sim de fazê-las refletir sobre uma situação”. No Chile, os temas pendem para o humor, enquanto na Argentina e Uruguai têm forte peso na questão política — inclusive, nas épocas de ditadura militar, muitos pajadores foram exilados ou presos políticos por seus versos.
EL PAYADOR
O grande divulgador da pajada no RS foi Jayme Caetano Braun. Natural de Bossoroca, despontou nos anos 1960 e foi um dos quatro troncos missioneiros da cultura regional. Trouxe para cá a pajada inspirado pelo uruguaio José Francisco dos Santos Silveira. Falava sobre a terra, as injustiças sociais e a história do estado e defendia a ideia das três pátrias gaúchas ligadas pelo pampa, o que acaba sendo ideia comum aos atuais pajadores rio-grandenses. “Bochincho” é sua pajada mais conhecida e talvez o poema mais popular da declamação gaúcha, mas obras como “Galpão de estância”, “Payada do safenado” e “Galo de rinha” são clássicas. Faleceu em 1999. Graças à mobilização dos pajadores que o admiravam, foi instituído o dia 30 de janeiro, data de seu nascimento, como o Dia do Pajador Gaúcho (Lei Estadual nº 11.676/2001). Argentina e Uruguai também têm suas datas oficiais: 23/7 e 23/8. Além de El Payador, Pedro Júnior destaca os nomes de Carlos Molina e Gustavo Guichón (Uruguai), Jorge Céspedes “Manguera” (Chile), Tito Papillo (Cuba), Adão Bernardes, Arabi Rodrigues, Jadir Oliveira, João Sampaio, José Estivalete e Paulo de Freitas Mendonça (Brasil) como referência.
MOVIMENTO PAJADORIL
“Quando o Jayme faleceu, a imprensa anunciou que morria com ele a pajada, o que não aconteceu e foi exatamente o contrário: a partir dali, a pajada começou a ter um destaque maior, criou-se um movimento de pajadores e começamos a usar esse termo com mais força”, conta Pedro, que apresenta festivais há mais de 20 anos, sempre em décimas improvisadas. No Encontro de Artes e Tradição Gaúcha (Enart) de 2017, pela primeira vez, os 20 grupos foram introduzidos por pajadas temáticas, todas criadas por Pedro. Nos muitos festivais de poesia e declamação pelo RS, a pajada está entre os textos que vão ao palco, seguindo os passos dos países platinos, onde festivais de pajada acontecem o ano inteiro. “Hoje temos mercado de trabalho e atuação. Ainda somos um movimento, a pajada ainda tem que provar muita coisa, mas está num crescente.”
Fonte: https://jornaldomercado.com.br/
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