quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Os vultos que guardam o palácio de Bento Gonçalves em Piratini

Até sábado, Zero Hora conta histórias de lugares míticos da Guerra dos Farrapos, palcos da revolução que abrigam lendas e narrativas capazes de atiçar a curiosidade e a imaginação dos gaúchos

Foto: Carlos Macedo / Agencia RBS

Na primeira vez em que entrou no Palácio de Governo da República Rio-Grandense, onde o general Bento Gonçalves chefiava a nação separada do Brasil, a condutora de turismo Eliane Peroba Cardozo, 28 anos, achou que estava sendo acompanhada por alguém caminhando às suas costas.

A cada passo que dava na escadaria de madeira de 18 degraus, a qual leva ao segundo pavimento, imaginava ouvir pisadas de botas na retaguarda. Ao virar-
se para ver quem era, espantou-se: não havia ninguém.

Era julho de 2011 quando Eliane intuiu que estava sendo escoltada ao ingressar no Palácio de Governo, em Piratini, a sede da insurreição contra o império brasileiro. Hoje, ela lembra que não sentiu medo. Mas teve certeza de que alguém a vigiava, de forma solene e atenta, monitorando onde pretendia ir e com que intenções se movia.
– Quando olhei para trás e não havia ninguém, pensei “ué, quem é que vinha comigo?” Depois de refletir, concluí: “eu sou a intrusa” – admira-se.

O sobrado onde os farrapos instalaram o governo, em novembro de 1836, após proclamada a independência do Rio Grande do Sul, fora construído 10 anos antes por um tal de Manuel Jacinto Dias. Foi ocupado por Bento Gonçalves a partir de novembro de 1837, pois o comandante estivera preso, no Rio de Janeiro e depois na Bahia, de onde fugiu para retomar a revolução.

Do segundo andar do palácio, onde montou o gabinete, Bento podia observar tudo ao redor de Piratini, que fica no topo de um cerro da Serra dos Tapes. Despachava com o multiministro Domingos José de Almeida (que tinha a chave do cofre), palpitava com o editor italiano Luigi Rossetti sobre o conteúdo do jornal O Povo e fazia a atividade que lhe era mais prazerosa – discutir estratégias militares com seus oficiais. Era de lá, dos janelões, que lançava proclamações ao povo reunido na rua.

Portas se abrem, depois se fecham
Não se pense que apenas Eliane Cardozo ouve estranhos rumores. O diretor de Turismo de Piratini, Antônio Lobato Ortiz, 59 anos, já se levantou da cadeira por acreditar que estavam batendo à porta do escritório, o qual funciona dentro do Palácio de Governo. Quando atendeu e abriu o trinco, deparou com o vazio.
– Cheguei a ter a nítida impressão de que estavam forçando a porta. No fundo, sabia que não era ninguém, mas fui conferir – relata Ortiz.

O prédio aguça a imaginação, com suas quatro enormes portas e janelas na fachada. Nos paredões, há seteiras (frestas cônicas), onde as sentinelas podiam assestar os fuzis em caso de ataque externo. Dentro do palácio, há uma passagem secreta para o sótão, onde os farroupilhas escondiam documentos e valores. Vultos fardados se posicionariam na entrada desse alçapão para assustar os bisbilhoteiros, os mais sensitivos e propensos a assombros.

Aos fundos da antiga sede governamental, está um fogão árabe de sete bocas – as quais podem ser constatadas nas aberturas da chaminé –, que servia para abastecer generais, ministros e seus ajudantes com chimarrão e carne assada nos prolongados serões. Atualmente, ao participar de reuniões noturnas no palácio, desta vez para tratar do turismo em Piratini, há quem estremeça com ruídos imprevistos. Especialmente se estiver sentado à mesa retangular, de 2m80cm de comprimento, que teria acomodado o presidente Bento à cabeceira.
– Sempre parece que tem alguém por perto. Portas que se imaginava fechadas aparecem abertas, e vice-versa – observa Ortiz.

O sugestionado convívio com fantasmas no palácio é amigável. Ortiz ressalta que os funcionários do turismo e do museu se sentem privilegiados por trabalhar no prédio onde foi administrado o efêmero país chamado 
Rio Grande do Sul.

Nem todos são bem-vindos, porém. Ortiz conta que um vendedor de artigos gauchescos, ao pernoitar no palácio devido à lotação dos hotéis, foi encontrado na rua, 5h da madrugada, os nervos em frangalhos, olhos esbugalhados, num tremor só. Interpelado, balbuciou que não conseguira dormir, pois escutara gritos, gemidos, xingamentos. Então, pegou a sua trouxa e deu no pé. Ficou a dúvida: o que o desditoso hóspede fez para ser expulso do local?

Enigmas farrapos a desvendar
Se há mesmo fantasmas pelo Palácio de Governo e outros prédios da República Rio-Grandense, em Piratini, o pesquisador e professor de história João Manoel Ferreira, 53 anos, gostaria de conversar com eles – e demoradamente. Convidaria para que revelassem episódios obscuros da Revolução Farroupilha, esses, sim, verdadeiros mistérios a se esclarecer.

A maior curiosidade de Ferreira é saber o que aconteceu na infame madrugada de 14 de novembro de 1844, no Cerro de Porongos (atual município de Pinheiro Machado), próximo a Piratini, quando o esquadrão de Lanceiros Negros foi massacrado por tropas imperiais sem chance de defesa. O general farroupilha David Canabarro teria mandado desarmar os combatentes, temidos pelas cargas de lança, para apressar o fim da guerra civil? Ou tudo não passou de uma injustiça contra Canabarro, acusado de trair os farrapos?
– Gostaria de me deparar com um fantasma para saber mais coisas. Há fatos para os quais não temos respostas, ou são muitos os vieses – diz Ferreira.
Os espectros também poderiam contar detalhes sobre a vida durante o governo de secessão. Piratini foi escolhida capital por razões estratégicas, práticas e políticas. Fica perto do Uruguai – útil para uma retirada em caso de invasão –, no topo da áspera Serra dos Tapes e guarnecida por obstáculos naturais, cerros e matas. Tinha casarões apropriados para abrigar os ministérios, mais o fervor revolucionário de jovens oficiais como Manoel Lucas de Oliveira, Joaquim Pedro Soares e Joaquim Teixeira Nunes.

Visitar Piratini, atualmente, é como entrar no cenário farroupilha. É por isso que Francieli Domingues, 20 anos, condutora de turismo, prefere ficar mais tempo no Palácio do que em casa. Diz que ouve sons – cochichos em salas vazias e rangidos de pisadas no assoalho – e pressente o farfalhar de vultos roçando perto de onde está. Longe de se apavorar, Francieli entrega-se ao devaneio. Chega a pensar que está na época errada, gostaria de voltar aos primórdios do século 19.
– Aqui se pode ouvir o tilintar dos farrapos – exclama ela.


Fonte: http://zh.clicrbs.com.br/

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