domingo, 21 de setembro de 2014

No mês farroupilha, historiador diz que gaúcho não tem o monopólio da revolta

 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21

“Espírito” gauchesco toma conta das cidades e materializa-se no Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Ana Ávila
Quando chega setembro até o mais distraído gaúcho percebe o sentimento tradicionalista se espalhando pelo Rio Grande do Sul. São motoristas pilchados nos ônibus e táxis da capital, gauchinhos que mal largaram a mamadeira empunhando uma cuia de chimarrão nas redes sociais de pais orgulhosos, congestionamento na entrada do Acampamento Farroupilha, em Porto Alegre. No dia 20, desfiles comemoram o início da revolução. Comumente associada à imagem guerreira e viril do gaúcho, a revolta iniciada em 1835 foi apoiada apenas por parte da população, como explica na entrevista a seguir o historiador Luís Augusto Farinatti.
O ímpeto separatista é outro aspecto que, com frequência, vemos atribuído ao gaúcho como diferencial. No entanto, Farinatti lembra que o Estado mais ao sul do Brasil não foi o único a se levantar contra o Império. “Na mesma época da Revolução Farroupilha, teve a Balaiada no Maranhão, a Cabanagem no Pará, a Sabinada na Bahia. Em Pernambuco, nas décadas de 20, 30 e 40 houve uma revolução em cima da outra. Então, nós não temos o monopólio da revolta”, afirma. Para o historiador, o gaúcho não tem nada de diferente do restante dos brasileiros, só gosta de acreditar que tem.
Sul21 – Qual o principal equívoco quando se fala na Revolução Farroupilha?
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Luís Augusto Farinatti - Em geral, se pensa que se trata de uma revolta do Rio Grande do Sul contra o Brasil. Isso efetivamente não aconteceu. Foi uma revolta de parte da sociedade rio-grandense. Outra parte lutou pelo projeto do Império. O projeto da República rio-grandense não é igual ao projeto do Rio Grande do Sul. É de uma parte que, já no início da República, foi tomada por uma memória construída como se fosse um projeto de todos.
Sul21 – Quando iniciaram as comemorações como conhecemos hoje?
Farinatti - Já é comemorada e considerada um marco pelo Governo do Estado no início da Republica no Rio Grande do Sul. Mas comemorações cívicas, com desfiles, não saberia te dizer quando começaram. O republicanismo gaúcho usa a Revolução Farroupilha como uma pedra fundamental, o mito de origem. O Assis Brasil é um republicano rio-grandense que escreve um livro em que vai construir essa ideia.
Sul21 – Vem daí a imagem do gaúcho lutador, aguerrido?
Farinatti - Vem junto. Não é exatamente o mesmo processo, mas é concomitante e se une a esse processo. É uma construção de uma identidade regional que é muito parecida com a construção das identidades nacionais no mundo todos nos séculos XIX e XX. A nação é um artefato cultural, ela é uma invenção, uma construção cultural e ideológica com base em percepções que são bastante presentes na população inteira. Ela é um artefato, ela não é natural. Ela não se edifica sobre o vazio, usa materiais que a pessoa já tem. Essa era uma ideia que vinha sendo construída ao longo do século XIX e foi moldada, forjada, construída. Combina com o mito nacional regional do Rio Grande do Sul.
Sul21 – O senhor já disse que a construção dessa imagem foi feita em oposição a do brasileiro. Por que razão?
Farinatti - A identidade sempre ocorre em oposição a um outro. Tu precisas criar um outro para reforçar os elementos do eu. Esse outro, que é o brasileiro, ele é visto como único. Se inventa como se um paraibano, um paulista e um paraense coubessem em um único estereótipo de brasileiro, que é o espelho convexo de tudo que a gente gosta de pensar que nós somos. Se a gente diz que ele é mestiço, malemolente, pouco trabalhador, desonesto, desorganizado, submisso, acomodado… Nós somos o quê? Brancos, trabalhadores, viris, honestos, organizados. Portanto, somos mais gaúchos quanto menos brasileiros. Esse sentimento não é do tradicionalismo. É difuso em graus diversos. Não foi o MTG que inventou isso. De forma alguma eu gostaria de desvalorizar o tradicionalismo, as versões míticas do passado porque toda a sociedade precisa dos seus mitos. O que os historiadores fazem é oferecer uma versão com base na pesquisa histórica, com os métodos e o rigor da pesquisa histórica, que produz resultados completamente diferentes dessa narrativa construída.
Sul21 – O MTG se apropriou dessa imagem que já existia?
Farinatti - Sim. O MTG não inventou do zero, ele se apropria de imagens que já existem, molda, dá uma forma para elas e aí divulga, ritualiza, cria espaços de socialização que ritualizam isso.
Sul21 – De quando isso vem?
Farinatti - De meados do século XX, pós-Segunda Guerra. Quando Vargas vai fazer o centralismo, é uma reação regionalista a isso. Queimam-se as bandeiras dos estados, proíbem-se os hinos dos estados. O tradicionalismo vai surgir como uma reação a isso.
Sul21 – Políticos, imprensa e outros setores também têm papel na consolidação dessa imagem do gaúcho?
Farinatti - Com certeza. Além desses movimentos, a imprensa tem muita influência. Escolas também, ao promoverem o dia do gaúcho. Tem a ver com uma educação cívica, para ensinar às pessoas e ritualizar o que seria esse mito da nação rio-grandense.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
As prendas foram “inventadíssimas”, diz historiador| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Qual papel tem as mídias tradicionais locais na preservação desta imagem de que os gaúchos são realmente diferentes do restante da nação?
Farinatti - A publicidade ajuda muito. Além disso, vários programas jornalísticos trazem essa visão do gaúcho valoroso, diferente. Uma coisa interessante é que se tem essa visão estranha de que o rio-grandense é diferente porque não aguentou o cabresto, não é acomodado como os outros brasileiros, mas não se dão conta que, na mesma época da Revolução Farroupilha teve a Balaiada no Maranhão, a Cabanagem no Pará, a Sabinada na Bahia. Em Pernambuco, nas décadas de 20, 30 e 40 houve uma revolução em cima da outra. Então, nós não temos o monopólio da revolta, não tem a ver com a índole institucionalizada dos gaúchos. É só uma coisa na qual a gente gosta de acreditar. Isso não explica nada sobre o passado. Explica sobre quem nós gostamos de ser.
 | Foto: Ramiro Furquim/Sul21
| Foto: Ramiro Furquim/Sul21
Sul21 – Existe de fato uma resistência em incluir elementos novos na “tradição” gaúcha? Por quê?
Farinatti - Eu acho que nada é petrificado, mesmo que se queira. Novos elementos acabam sendo incluídos, como no caso dos lanceiros negros como heróis, uma coisa que não era vista. A imagem da própria mulher no tradicionalismo já foi mudada em alguns setores. É claro que resistência existe sempre, especialmente naqueles setores mais tradicionais, que querem fossilizar uma imagem do passado, que nem verdadeira é, mas eu a vejo em movimento.
Sul21 – Qual o papel da prenda, ela de fato foi “inventada”? Sua imagem não contribui com o machismo atribuído ao gaúcho?
Farinatti – Inventadíssima! Claro, é uma ideia do século XIX patriarcal, do homem como protagonista e a mulher como retaguarda, doçura, da esfera privada, rainha do lar, que faz coisas para auxiliar e cuidar, não para protagonizar. Ainda assim temos, por exemplo, a imagem da Anita (Garibaldi), que é interessante, é uma mulher, mas desempenhando funções de homem. Não é simples, mas a prenda, reproduzida no tradicionalismo, é uma auxiliar do homem.
Sul21 – As músicas, danças e vestes também foram inventadas na construção dessa imagem?
Farinatti - Houve muito estudo desses folcloristas dos anos 50 e 60 para buscar isso. Alguns elementos, eles recuperaram perto do que era. O que não tinha, eles inventaram. A partir de danças açorianas, por exemplo. Se nos Açores dançavam a cana-verde, se imagina que aqui se dançasse também. No dia a dia, passa como se fosse assim. Não são totalmente mentiras. São adaptações criativas. O problema é que para funcionar, têm que passar por verdades absolutas. Essa relativização que eu estou fazendo, não se pode fazer porque aí não funciona como imaginação coletiva de um passado. Tem que apagar essa origem, tem que parecer que nasceu pronta. Essa “carpintaria” toda não pode aparecer.
Sul21 – Acredita que faça diferença para o gaúcho saber que a Revolução Farroupilha não foi unânime e liderada por uma elite?
Farinatti - Faz diferença, sim. De um lado, acho que tem um grupo, uma parte da sociedade, que não quer ver. Há um esquecimento cultural, por mais que tu digas, repitas, ele não quer ver porque isso não funciona para o seu esquema narrativo do mundo. A explicação que ele tem para o mundo faz mais sentido do que essa, então, mesmo que tenha lógica, ele esquece em seguida porque não é o que ele quer ver. Por outro lado, acho que aqueles que aceitam, que refletem, só tem a ganhar. Tem uma possibilidade maior de ver o mundo de uma forma mais complexa e isso sempre é bom.
Sul21 – O que faz essa imagem perdurar? O gaúcho, em geral, gosta de se sentir diferente do restante do país?
Farinatti - São vários fatores. Tem elementos que estão viralizando isso, como os centros de tradição, a imprensa, fatores externos às pessoas, mas também tem uma receptividade porque nós gostamos de nos sentirmos diferentes. Nós somos brasileiros, mas um tipo muito especial. Não no sentido de melhor, mas de diferente.
Sul21 – Qual é, portanto, a saída para a questão cultural? Negar o que foi construído, reinventar esta imagem ou deixar assim por que não há o que fazer?

Farinatti - A história deve oferecer sua versão, a partir do seu rigor de método, explicar isso e oferecer como uma das versões para a sociedade se apropriar dela como achar melhor. Acho que é melhor, mas não posso impor aos outros isso. O que eu posso fazer é oferecer e explicar como cheguei a essas conclusões. Entender o caminho de como as conclusões são geradas é importante.
Fonte:ww.sul21.com.br/

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