quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

Um chapéu de todos os gaúchos

Yasmin Müller usou o acessório do namorado ao se despedir dele em 27 de janeiro
Yasmin, com o chapéu que usou no velório de LucasFoto: Diego Vara / Agencia RBS
Bruna Scirea

Na tarde de 27 de janeiro, uma jovem cruzou o interior do ginásio municipal de Santa Maria com um chapéu negro de abas largas sobre a cabeça. Yasmin Müller, 19 anos, era o único cortejo de um caixão transportado através do recinto quase vazio.

Quando o ataúde foi depositado no ponto onde ocorreria o velório, a garota debruçou-se sobre ele e chorou, separada do corpo do namorado, Lucas Dias de Oliveira, pela folha de madeira. Nesse abraço de despedida, o largo chapéu negro, no modelo típico dos campeiros do pampa, coroou a superfície do caixão, escondendo atrás de si as feições de Yasmin. Naquele momento, não se tratava mais apenas de uma jovem em choque pela perda do amado de 20 anos. Era o Rio Grande do Sul inteiro que estava ali, debaixo daquele chapéu, em pranto por mais de 230 de seus filhos.

Antes de ser um símbolo do luto, o Cury encouraçado preto foi um marco na história de um casal. Lucas namorou o acessório durante três meses do segundo semestre de 2012, quando trabalhava na Casa do Gaúcho, uma loja de artefatos gaudérios do centro de Santa Maria. Indeciso, ele experimentou modelos variados, alimentou dúvidas sobre a cor mais adequada e viu o preço da peça subir e descer até que Yasmin aparecesse em sua vida, na condição de nova recepcionista da loja.

As regras da casa vetavam relacionamentos entre funcionários, mas Yasmin não resistiu ao ginete canhoto de vasta cabeleira, que dedilhava o violão como se fosse destro e cantava com voz imponente sob a parreira de casa. No dia 19 de setembro, véspera do Desfile Farroupilha, ela viu o namorado provar pela milésima vez os chapéus e decidiu dar um empurrão:

— Fica com o preto, que combina com tudo.

— Gostei mais do cinza — respondeu Lucas.

— Então pega o cinza.

Mas prevaleceu o gosto da namorada. No 20 de Setembro, pilchado e com o Cury como arremate sobre a cabeça, Lucas subiu no cavalo para desfilar seu orgulho gaúcho pelas ruas de Santa Maria.

Foto: Fernanda Ramos

O chapéu que comoveu o Brasil ao cobrir o caixão do ginete acompanhou toda a rotina do casal na véspera da tragédia. Eles haviam combinado comemorar o aniversário de Yasmin na festa marcada para a noite do dia 26 na boate Kiss, mas antes passaram o sábado ensolarado em uma gineteada. Lucas queria treinar para um rodeio do qual participaria no fim de semana seguinte, em Júlio de Castilhos.

Os mais chegados sabiam que Lucas era "pachola" — todo vaidoso e perfeccionista. Naquela tarde de sábado, ele se demorou em um longo ritual até montar o cavalo. Fez questão de amarrar bem o chapéu na cabeça. Quando finalmente subiu no bagual, Yasmin gravou sua última performance com a câmera digital. O vídeo mostra Lucas resistir por alguns momentos no animal corcoveante, até ser jogado ao chão. Mas o chapéu permanece firme na cabeça.

Um instante antes da tragédia, o casal troca a última jura de amor 

À noite, de volta à cidade, Lucas e Yasmin dedicaram-se aos preparativos para o show do grupo Gurizada Fandangueira. Enquanto ela pintava as unhas de vermelho e maquiava o rosto, ele separava a pilcha. Na última hora, mudou de ideia. Dobrou a bombacha, pendurou as botas na parede do quarto e pousou o chapéu negro sobre a cama — como quem separasse a roupa a vestir no dia seguinte. Para a Kiss, foi de "magrão". Dentro da boate, diante do namorado de calça jeans, camiseta branca e cabelo alinhado, Yasmin derramou-se numa jura apaixonada.

— Amor, nunca me deixa, tá? — respondeu o rapaz.

Foram as últimas palavras que trocaram. Lucas afastou-se em direção ao banheiro da casa noturna. Depois de ele virar as costas, o fogo eclodiu, a fumaça preta se espalhou. Em meio aos empurrões e ao desespero, Yasmin correu em busca do namorado, mas acabou sendo puxada por um amigo. Descobriu-se do lado de fora, salva, mas sem seu companheiro. Tentou voltar para dentro da boate e trazê-lo, forcejou, mas foi contida. Passou as horas seguintes peregrinando de hospital em hospital, à procura dele, agarrada à esperança. Então soube que seu corpo havia sido identificado, no meio de tantos outros, no ginásio municipal.

Lucas havia determinado que apenas duas pessoas podiam tocar em seu chapéu: a afilhada Isadora, de quatro anos, e a amada, Yasmim. O acessório havia se convertido para ele em um objeto sagrado, a ser tratado com zelo e veneração. Quase não saía de sua cabeça. Havia se transformado em um prolongamento de seu corpo e de seu ser.

Por isso, antes de seguir para o ginásio, Yasmin foi à casa do namorado, entrou no quarto dele e recolheu o chapéu do local onde ele havia sido deixado horas antes, sobre a cama. Queria levá-lo ao velório como uma homenagem — e para que Lucas se despedisse dele.

Yasmin também apanhou a bombacha preferida do rapaz, a camisa azul claro recém-comprada, o lenço vermelho, a boina cinza. Essas seriam as vestes com que ele seria sepultado. Em meio aos soluços, a jovem partiu para o ginásio sem lembrar de limpar a maquiagem da véspera ou de remover o esmalte rubro. Depois daquele dia, o que ela nunca mais lembrou foi de voltar a se maquiar ou pintar as unhas.

Lucas foi sepultado com a pilcha que sintetizava seus valores e seu modo de vida. Mas o chapéu ficou, representando sua ausência e sua presença. Yasmin voltou à casa e devolveu-o à cama, colocando-o no local exato onde o rapaz o havia deixado — uma forma de amansar a saudade dos que ele deixou.

Em algumas noites, em uma tentativa de aplacar a dor, ela tentou dormir no quarto do namorado. A casa dele ficou vazia quase um mês, até a semana passada, porque os pais ainda não tinham força para suportar o vazio deixado pelo filho único perdido. Entre as quatro paredes, Yasmin examinou as fotos dele espalhadas pelo ambiente, encarou as botas, sentiu o cheiro de queimado da carteira recuperada na boate, leu a frase que escrevera com batom no espelho ("Se eu morrer, que seja de amor e que o meu amor seja todo teu"), sentiu nos dedos o couro do chapéu de abas largas. Não teve como adormecer.

No próximo verão, o casal prestaria junto o vestibular para Medicina Veterinária na UFSM. Haviam encontrado, um no outro, o apreço pela vida no campo, e queriam fazer disso profissão. Agora, Yasmin já não sabe se manterá o projeto. É difícil para ela pensar no futuro, porque Lucas não está lá. Os planos que consegue fazer estão ligados a ele. Vai tatuar no corpo uma frase tirada do primeiro bilhete escrito por Lucas: "Me procurando, achei teus olhos pelos caminhos de flor e encanto". Também vai fazer uma prova de seleção para o curso de técnico em agropecuária, porque a interpreta como uma herança de Lucas. Foi ele quem a inscreveu.

Ninguém teve coragem de contar para Isadora, a afilhada do ginete, que ele não vai mais retornar. Disseram à menina que o rapaz virou um anjo e está no céu, cuidando dela. Na última vez que viu Yasmin chorar no pátio de casa, a menina perguntou:

— Quando o Lucas voltar você vai parar de ficar triste, não é, Yasmin?

Texto de bruna.scirea@zerohora.com.br 

Fonte: Zero Hora

1 comentário:

Luis Afonso disse...

Emocionante demais, e chega a "doer" ao ler tudo isso... não tem uma explicação... não existe como tentar entender...

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