* Paulo Monteiro
Após escrever, encenar e publicar peças literárias, João Simões Lopes Neto, que já escrevera e publicara contos e inúmeros artigos, deu a lume, em 1910, a um livro intitulado Cancioneiro Guasca – Coletânea de poesia popular rio-grandense. Ali reuniu vasta coleção de poemas anônimos (folclóricos) e popularizados (de autores conhecidos), que eram sabidos de cor pela população. Flávio Loureiro Chaves, autor de uma obra fundamental sobre o escritor pelotense, Simões Lopes Neto: Regionalismo e Literatura, de 1982, cuja segunda edição revista, sob o título de Simões Lopes Neto, é de 2001 (Porto Alegre: Instituto Estadual do Livro/Editora da Universidade), destaca, à página 71 desta última edição que “está em Cancioneiro sua fonte popular e, nela, alguns temas, às vezes modificados, outras ampliados, que constituem a matéria das narrativas englobadas nos Contos Gauchescos. Aí foram colhidos, sobretudo, os traços coletivos que lhe permitiram tipificar o gaúcho na personagem de Blau Nunes, sem sacrifício da individualidade e afastando-o, por outro lado, da caricatura amorfa a que fora reduzido na sequência das generalizações”.
Quando, entre 1771 e 1772, Alonso Carrió de la Vandera cruzou o pampa ao norte de Montevidéu, conheceu os famosos gaudérios, que não eram desertores paulistas, como afirmam a maioria dos historiadores: “munidos de uma guitarrinha, que aprendem a tocar muito mal e a cantar destoadamente várias quadras, que estropiam, e muitas que tiram se sua cabeça, que regularmente giram sobre amores”. (Alonso Carrió de La Vendera; El Lazarillo de Ciegos Caminantes, Biblioteca Ayacucho, Caracas, Venezuela, 1985).
Quase duzentos anos depois Arturo Capdevila escreveu sobre a primitiva literatura popular do Pampa, nestes termos: “Os começos literários na chamada época colonial, se tirarmos a oratória sagrada das grandes datas da Igreja, não podem ser mais humildes. Cantares, pequenos romances, versos de ocasião, entretém a vida de família sem alcançar maior ressonância; ou se trata de uma mesma produção que reflete a espanhola, anônima, como caso das advinhas, décimas de devoções ou pequenas sátiras (in Domingo Faustino Sarmiento, Facundo. W. M. Jackson: Buenos Aires, 1945, p. VII). À página seguinte afirma: “Quem fala de Buenos Aires, do mesmo modo se refere a qualquer outra cidade principal da América”.
Cento e poucos anos depois do que Alonso Carrió de la Vandera ouviu e viu os gaudérios ao norte de Montevidéu, Simões Lopes Neto recolheu no Cancioneiro Guasca, em termos de produção anônima, o mesmo tipo de verso de que nos falam o autor de El Lazarillo de Ciegos Caminantes e Arturo Capdevila, ao apresentar Facundo. São versos que vemos repetidos (“estropiados”, na expressão de Alonso Carrió de la Vandera), como estes:
A Tirana é mulher velha,
Já não é mais rapariga,
Por isso ela já não quer
Que lhe metam em cantiga.
A Tirana é mulher brava
E mora num faxinal,
Socando sua canjica,
Comendo feijão sem sal.
A Tirana quando olha
P’ra gente, de atravessado,
É sempre muito melhor,
Não s’esperar o recado!...
As “coplas”, quadras ou trovas transcritas da página 28 do Cancioneiro Guasca (Porto Alegre: Sulina, 1989), mostram lirismo, humor e a velha raiz ibérica, ao usar rapariga, no sentido de “moça”, no melhor português europeu. Por isso, quem não está acostumado com o estudo profundo e refletido da literatura folclórica da região platina, de certo modo se assustará com a diferença entre aquela literatura e a gauchesca dos nossos dias.
Digo que as “memórias” de Blau Nunes estão para a literatura do Rio Grande do Sul como El Gaucho Martín Fierro está para a argentina. Se não tivéssemos os Contos Gauchescos, inspirados e orientados no Cancioneiro Guasca, nós não teríamos uma obra ciclópica como O Tempo e o Vento, de Erico Verissimo, bem como a maioria da produção literária posterior, como os romances de Ciro Martins e tantos outros.
* Membro da Academia Passo-Fundense de Letras
Fonte : Revista Somando
Passo Fundo - RS
Dilerman ZanchetRevista Somando
(54) 3045 3088
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