quarta-feira, 14 de outubro de 2015

“Um Noivado no Rincão do Buraco”

Para falar sobre “Um noivado no Rincão do Buraco” muni-me de alguns armamentos. Os primeiros deles duas edições do Cancioneiro Guasca, de João Simões Lopes Neto, cuja primeira edição é de 1910: (“Cancioneiro Guasca”: Porto Alegre: Editora Sulina, 1999, onde o poema aparece entre as páginas 199 e 202) e “Obra Completa de João Simões Lopes Neto”, organizada por Paulo Bentancur (Porto Alegre Sulina, 2003, onde o poema está inserido entre as páginas 195 e 198). 

De início algumas observações sobre a obra. João Simões Lopes Neto colocou em sua obra, uma espécie de subtítulo que é o seguinte: “Antigas danças * Poemetos * Quadras * Trovas * Dizeres * Poesias históricas * Desafios”. “Um Noivado no Rincão do Buraco” está transcrito no “capítulo” “Poemetos”, que como tu bem o sabes quer dizer “pequenos Poemas”, a maioria de autores conhecidos, cujos nomes, muitas vezes simples iniciais, constam ao final.

João Simões Lopes Neto não escreveu nenhum desses poemas, pelo menos não os assinou. As composições ali reunidas podem ser divididas em dois grandes grupos: a literatura folclórica (aquela que não tem um autor conhecido) e a literatura folclorizada (aquela que o povo sabe de cor, mas tem autor conhecido). Este é o caso de “Um Noivado no Rincão do Buraco”. 

Para reuni-los teve diversos colaboradores. Um deles sua irmã, Maria Izabel, conforme conta sua sobrinha e biógrafa Ivete Simões Lopes Barcellos Massot à página 47 de “Simões Lopes Neto na Intimidade” (Porto Alegre: BELS-SEC, 1974).

Bom, mas voltando ao poemeto. Duas observações sobre ele. A primeira delas é com relação ao verso: “Se tua égua está sã...”. Antigamente, os gaúchos não montavam em égua. Essa foi uma das principais críticas à inautenticidade de “O Gaúcho”, de José de Alencar. A personagem principal, Manuel Canho, monta uma égua, Morena, com a qual mantém uma relação... quase amorosa, digamos. Para escândalo dos gaúchos daqueles tempos, como lembra Augusto Meyer no famoso Prefácio e Notas que escreveu para “O Gaúcho” (Rio de Janeiro: Organização Simões, 1954, páginas 5 a 11 e 245 a 257). Note-se que “O Gaúcho” é de 1870 e (Um Noivado no Rincão do Buraco (1896). 

“Se tua égua está sã” pode significar simplesmente “se tua égua já saiu do cio”. 

Outra observação o Autor/Narrador foi o primeiro convidado a iniciar a série de “brindes” que, na melhor expressão literária, se diz “saúdes cantadas”. É claro que assim se fez porque ele já era reconhecido como poeta ou até improvisador. Ele não “disse um verso”, isto é uma quadra, trova ou “copla”, como dizem os castelhanos, mas apenas dois versos, meia quadra, ou dístico, e sem rima. Era como se desafiasse alguém a completá-la, mas ninguém o fez. Quem disse uma trova completa, foi a noiva. Tudo isso corresponde a um processo de criação literária que reflete o humor provocado pelas “saúdes cantadas”, a nível popular, como já revelei há vários anos, nalguns trabalhos de meu saudoso amigo Eno Teodoro Wanke, profundo estudioso da trova ou quadrinha. Prova daquele reconhecimento do poeta é que a noiva se virou para ele e não para qualquer outro dos convivas.

Um outro ponto importante, importantíssimo, mesmo é que “Um Noivado no Rincão do Buraco” te um autor (J.R.P.), uma data de composição (1896) e um local (Camaquã). Sobre esse ponto, depois que me enviaste cópia do “poemeto”, andei navegando pela Internet e, em quase todos os sítios visitados, encontrei os poemas do “Cancioneiro Guasca”, como de autoria de João Simões Lopes Neto, o que não é verdade, pelo menos assumida pelo criador de Blau Nunes. Repito: o “Cancioneiro Guasca” é constituído de poemas folclóricos (sem autor) e folclorizados (de autores conhecidos que caíram na memória popular). 

Por fim, quem quiser se aprofundar no estudo do “Cancioneiro Guasca” pode um grande livro de Augusto Meyer, intitulado “Cancioneiro Gaúcho – Seleção de poesia popular com notas e um suplemento musical”. À minha frente duas edições, ambas da Editora Globo. A primeira delas de 1952 e a segunda, com alterações importantes, de 1959. Outro trabalho interessante, de Augusto Meyer, som o título de “Poesia popular gaúcha”, está disponível em “Prosa dos Pagos – 1941-1959” (Rio de Janeiro: Livraria São José, 1960, págs. 44 a 75). Aliás, esse livro é importantíssimo, pois apresenta alguns estudos indispensáveis para entendera obra do autor do “Cancioneiro Guasca”.

Transcrevo, abaixo, o “poemeto”, de autoria de J.R.P., como aparece nas edições do “Cancioneiro Guasca”.


Paulo Monteiro

Um noivado no Rincão do Buraco
(Camaquã)

Faz tempos que recebi 
Um bilhetinho do Bento 
Pelo qual me convidava 
Para ir a um casamento.

No bilhete me dizia: 
"Quem se casa é o Vicente 
Co'uma moça bonita 
E filha de boa gente."

E inda mais ele escrevia: 
"Se tua égua está sã, 
Vem cedo, qu'inda hoje mesmo, 
Bandeamos o Camaquã."

Chegando o dia marcado 
Partimos, sem mais demora. 
À tarde lá estivemos: 
Chegamos pela uma hora.

De chegada vi a noiva 
E conversamos um naco... 
Era a mais bela flor 
Lá do Rincão do Buraco!

Fomos p'ra mesa, jantar; 
Depois, um moço a meu lado, 
Pediu-me fizesse um brinde 
Oferecido ao noivado.

Peguei no copo, acanhado 
- Confesso de coração - 
E disse: - Viva o noivado 
E a bela reunião!

Em seguida, para a noiva, 
Dirigiu-se o meu vizinho 
E disse: - Mana Mercedes, 
Faz também o teu versinho!

Coradinha ela ficou 
E sorrindo p'r'o namorado 
Com jeito e com voz bonita, 
Agradeceu p'r'o meu lado:

"Viva o Vicente, meu noivo, 
Viva o meu noivo Vicente! 
Viva a gente do Buraco, 
Viva o Buraco da gente."

Numa garrafa arrolhada 
Pega um velho desastrado 
E pondo-a na boca gritou: 
"Este buraco é tapado!"

Este brinde fez um outro 
(Por apelido Papaco) 
"Quem quiser boa mulher 
Procure só no Buraco!"

Ainda outro, mui sério 
Comendo cocadas, diz: 
"Quem se casa no Buraco 
Faz o Buraco feliz."

Diz uma velha risonha 
Ao noivo e noiva brindando: 
"Não se esqueçam do Buraco 
Vão no Buraco ficando!..."

Ao noivo tocou a vez 
Tirou a viola do saco 
Dizendo: - "Mulher, te juro, 
Não saio mais do Buraco!"

"Hei de dormir no Buraco, 
No Buraco, trabalhar; 
Já que te achei no Buraco, 
No Buraco te hei de amar"!
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Depois de sair da mesa 
Os convivas, conversando, 
Os bens que a noiva possuía, 
Estiveram me contando:

"Esta moça que casou-se, 
- Diz um, pitador de naco - 
Tem boa data de matos 
Aqui no Rincão do Buraco."

Informa outro: "a menina 
Tem suas prendas, seu gado, 
Quem vê de fora o Buraco 
Calcula de um modo errado."
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Gostei das simplicidades 
E nunca dei o cavaco 
Nessa festa que assisti 
Lá no Rincão do Buraco.

J.R.P. – 1896

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