terça-feira, 29 de maio de 2012

Leia. Uma lição de vida.

Eu sou culpado pelo espetáculo.

Bem antes de fazer vinte e cinco anos de carreira musical, eu era um menino, que apesar da aparência franzina, trabalhava de igual pra igual com os outros operários da lavoura e do campo num lugar denominado Tigre, município de Alegrete, na época .
Naquele tempo eu nem imaginava estar um dia à frente de grandes composições e ao lado de grandes interpretes, fazendo parte da musicalidade do Rio Grande do Sul...

-Como comecei? Há! Sim. 
Essa é uma história que muita gente sabe, porque me orgulho de contar aos meus amigos, não para querer ser mais do que os outros que não passaram pela mesma experiência, mas pelo simples fato de não deixar apagar de minha memória cada vez que conto, as boas lembranças daquele tempo. 
Nós acordávamos as seis e trinta da manhã, tomávamos mate, dávamos risadas das peripécias dos companheiros, dos roncos de alguns, dos sonhos de outros, enfim, era assim que começava o nosso dia. 
Dirigíamo-nos até a casa do café que tinha aproximadamente uns 300 metros do galpão grande, todos ao mesmo tempo para que não tivesse um atraso sequer, no recomeço do serviço.Eram regras e regras a serem obedecidas para o andamento do “espetáculo”. 
Ali nós alimentávamos o corpo para aguentar o dia de serviço pesado que enfrentaríamos pela frente, eu tentava acompanhar no meu jeito de guri franzino , com cara de um pequeno grande homem, sim, porque não tinha diferença no serviço só porque eu era um menino, pelo contrário,talvez pra verem se eu aguentaria o repuxo, quando muita vezes fiz coisas que muito homem grande não faria. 

Depois do alimento subíamos todos numa carroceria de um 1519 e saímos para os nossos destinos de trabalho . 
De um a um o motorista do veículo ia deixando cada qual no seu lugar com regras e regras a serem obedecidas para o melhor andamento do “espetáculo”. 
Eu, na época de aguar (colocar a águas nos quadros demarcados por taipas) era ajudante de aguador do Sr Marino, um homem de mais ou menos uns 120 kg de pura força que chegava a ser cruel a maneira que ele trabalhava por tamanha vitalidade daquele ser humano, e ele por ter vitalidade e sabedor das regras da lavoura e que não são ridículas , porque regras que não são ridículas, são para serem obedecidas para o andamento do” espetáculo”. 
Uma vez eu tive que remontar ( refazer ) 350 metros de taipa numa parte baixa da lavoura onde a água estava passando por cima, quase desanimei por não me achar capaz de fazer tal tarefa, sim, porque para fazer isso tem regras que não são ridículas , porque regras que não são ridículas, são para serem obedecidas para o andamento do” espetáculo”. 
O seu Marino me ensinou como fazer aquele serviço, demonstrando, do jeito dele, a melhor forma na regra de realizar a tarefa, só que tinha um detalhe,ele era um homem infinitamente mais forte do que o menino de 14 anos, que não tinha tido o tempo de ser criança, mas como ele me ensinou a regra eu iria obedecê-lo porque regras que não são ridículas são para o melhor andamento do” espetáculo”.. 
Quando ele virou as costas para ir a outro quadro eu comecei a trabalhar do jeito que me determinou. 
Parecia tão fácil a forma com que ele calava a pá na terra molhada 
Tirando leivas (pedaços) de barro misturado ao arroz ainda pequeno e eu não conseguia, foi ai que conheci o tal de saibro, como se chama essa terra que tem uma mistura de argila, que com a água não deixa calar a lamina da ferramenta de trabalho,e a minha pá não calava a metade da folha, porque não tinha força suficiente e eu tinha que obedecer a regra porque a regra que não é ridícula serve pra melhor fazer funcionar o “espetáculo” . 
Mas que nada, como diz o gaúcho, tinha que remontar aqueles 350 metros de taipa estava quase pronto, e como nunca me afrouxei para o serviço , não seria aquele dia que isso iria acontecer, e de pouco a pouco, fui pegando o jeito até conseguir, claro que levei o dia todo. Quando o seu Marino voltou estava quase pronta a tarefa, e ele sabendo da regra, ao invés de criticar, me ajudou a terminar dentro da regra pra não parar o “espetáculo> 
Há! foi o primeiro elogio que ganhei na minha vida!É claro não estava como ele queria que estivesse, mas pelo menos a água não estava passando por cima e isso era o que importava para o andamento do “espetáculo”. 
Quando voltei para casa, à tardinha, não sentia os braços e todos sabendo do meu sacrifício, achavam uma maneira de perguntar, ou fazer piadas do meu cansaço, porque ao me ver acabado deveria ser um “espetáculo” ? 
Nos dias de chuva nós trabalhávamos no galpão ensacando e empilhando arroz para desafogar os armazéns, assim eu levava a vida aprendendo a ser homem, sem deixar de ser criança e sem parar o “espetáculo”. 
Por mais que eu tentasse ser um homem, eu ainda era uma criança que achava uma forma de brincar, mesmo que trabalhando dentro da regra pra não parar o “espetáculo” — No serviço a gente não podia conversar, porque 'eles' diziam que ia atrapalhar a produção, e isso era regra e regras são para serem obedecidas desde que não sejam ridículas e sirvam para o andamento do “espetáculo” então eu cantava baixinho numa mescla de improviso, assovio, até porque ninguém controlava ou tinha poder sobre meus pensamentos, e eu inventava música: ia cantando o meu serviço, e também tudo que estava ao redor sem parar ou deixar mal feito o “espetáculo”. 
Assim foi o tempo e agora estou chegando aos vinte e cinco anos de carreira musical, com muito orgulho de tudo o que fiz, pelos amigos que juntei, pelas pessoas que conheci e conheço e passaria por tudo novamente se preciso fosse para acompanhar as regras da vida que não ridículas , porque regras que não são ridículas, são para obedecê-las, para o exito do “espetáculo”. 
Aquele menino de 14 anos hoje está com 41, tentando evoluir, dentro das regras com a mesma forma que aprendeu com o seu Marino e com o seu pai, ou seja: passo a passo, tentando fazer a nossa música ser cantada e respeitada não só pelo conteúdo que apresenta, mas pelo o que ela significa para as gerações futuras da nossa gente e dar continuidade ao “espetáculo”>. 
O esforço é o mesmo que eu fazia para calar a lâmina da pá no saibro molhado, mesmo que agora só tenha que cantar sem me preocupar se estou atrapalhando o andamento do “espetáculo”, até porque não sou eu que atrapalho por que não tenho esse pensamento e sim as pessoas que ao tentar melhorar o “espetáculo” muitas vezes atrapalham o seu andamento, mas esse não é, e não será o meu objetivo. 
Se existem regras e nós vamos a lugares que tenham, cabe a nós ainda que com razão ou achando que temos, nos sujeitarmos a nossa arte a esse ou essa tentativa de melhorar o “espetáculo.” 

Bem .... 
Eu poderia pensar que pouca coisa mudou desde o tempo em que eu tinha a idade de menino 
Mas prefiro pensar que as pessoas que dizem estar fazendo o melhor para o andamento do “espetáculo” não estejam fazendo isso por gosto ou simplesmente por vaidade pessoal ou por ter um minuto de brilho, se apegando à luz da cultura . 
Prefiro pensar que os homens são de bem, e quando resolvem a administrar um “espetáculo”, não coloquem regras para dificultar o andamento do dito “espetáculo” e sim para melhorá-lo. 
Quando eu iniciei nos festivais muitas regras tinham e foram criadas outras mas muitas deixaram de existir para o melhor andamento do espetáculo. 
Como se o músico, o intérprete, e o compositor hoje fosse um obstáculo a ser ultrapassado estão fazendo novas regras pra impedir isso, ou seja, o avanço de alguns “vícios” como dizem promotores de eventos dessa natureza. 
Esse fim de semana participei de um festival que a meu ver extrapolou o limite das regras para o melhor andamento do espetáculo. 
Vejam os senhores e senhoras e amigos que eu como compositor poderia sim, estar credenciado, a minha esposa e filhos também, o que é normal, mas tinha um porém. 
Eles não poderiam de maneira alguma estar nos bastidores do meu local de trabalho. 
Eu não poderia estar com meus filhos no local em que eu estava trabalhando porque atrapalharia o andamento do espetáculo segundo eles. 
Olha! vejam só. 
Havia uns tempos que tinha nos bastidores de festivais salgadinhos, água, refrigerante, que aí justificaria a atitude de barrar essas pessoas, por que se for pensar que eu, minha esposa e meus filhos comecem 5 salgadinhos cada um, seriam 20 salgadinhos e mais os refrigerantes nós daríamos uma despesa enorme juntado todo o pessoal que estaria ali então nem se fala, e pra um festival de mais de 100.000 reais de orçamento fica difícil realmente, nesse caso a regra seria pra melhor andar o “espetáculo”. 
Nesse festival tinha água na pia do banheiro pelo menos. 
Bem, mas as regras não pararam por aí. 
Tem a tal regra de não poder ler a letra da música que eu concordo porque tem DVD e aií fica ruim os interpretes estarem de cabeça baixa e regras tem de serem obedecidas para o melhor andamento do “espetáculo”. 

Pergunto: 
Será que ao proibir os intérpretes a recorrer do recurso da leitura, se preciso for, ajuda no andamento do “espetáculo”? 
Roberto Carlos e outros grandes músicos da canção brasileira, ao ler em seus monitores de alta fidelidade as letras de suas composições em seus shows tira o brilho do “espetáculo”? 
Como os CDs são gravados ao vivo, não seria muito mais grave colocar uma obra musical rodar nas emissoras de rádio, representando aquele evento específico com letras de poemas erradas, sim, porque estamos lidando com seres humanos e não máquinas, e ao fazer isso ajuda no andamento do “espetáculo”? 
Bem, como disse esse fim de semana, estive em um festival que há muitos anos gosto de ir porque tenho grandes amigos e só não fiquei lá por que não classifiquei pra final minha música, naquele momento foi superada por outras concorrentes, mas isso é perfeitamente entendido, e é melhor eu dizer antes que alguém diga que estou escrevendo isso aqui só porque fui desclassificado. 

Voltando as regras.
Pois elas (as regras) não pararam por ai. Tinha o tal de cronômetro...
Se um CD ou DVD for confeccionado em Manaus é aceitável porque lá é aceito somente 74 minutos de áudio no cd, aí sem precisar cronometrar, é só diminuir a quantidade de obras e resolvido está. 
Nesse festival, na passagem de som era disparado um cronômetro que se ultrapassasse de 4:30’’ alguém avisava pra cortar os arranjos, ou tocar a música mais rápida, senão tu estava fora. 
E vi muita gente fazendo isso, arranjos maravilhosos sendo podado por um relógio. 
A arte cronometrada. 
Não estou falando porque tive que fazer isso, a minha música estava no tempo, mas colegas sacrificaram suas obras por isso. 
Mas são regras e regras são para serem obedecidas para o melhor andamento do “espetáculo”. Desde que não sejam ridículas. 

Pergunta: 
Será que cronometrar uma obra musical dando o poder ao cronômetro o mesmo da guilhotina, ajuda o andamento do “espetáculo”? 
Ao fazer um orçamento para um festival com cifras estrambóticas e colocar na mídia essa mostra de força e depois fazer dos músicos os algozes da cultura, ajuda no “espetáculo”? 
Alguns festivais (que nesse caso não o que eu fui porque lá ainda tem um lugar pra ensaiar, mesmo com os meus filhos sendo barrados no meu lugar de trabalho ) ORÇADO com essas cifras que eles mesmos gostam de dizer ,os músicos interpretes e compositores tem que ensaiarem suas músicas nos banheiros,debaixo de árvores, na chuva muitas vezes, ou embaixo de uma armação de lona que é colocada como forma de ajudar os trabalhadores da cultura . 
Esses trabalhadores, senhores, hoje tem instrumentos caríssimos pagos de forma trabalhosa honrada, para tentar dar qualidade ao “espetáculo” ! 
42 anos de festival no estado e ao invés de progredir estamos regredindo, abaixo de regras ridículas. 
Teria muitas coisas para perguntar mas cheguei a conclusão que: 
Eu sou culpado. 
Sou culpado por acreditar. 
Sou culpado por participar nesses eventos com essas regras ridículas. 
Sou culpado por ficar quieto. 
Sou culpado por sentir medo de ser podado dos festivais. 
Sou culpado por prejudicar meu companheiro de música e canto aceitando essas regras. 
Sou culpado de dar entrevistas e elogiar as pessoas que fazem essas regrar ridículas. 
Sou culpado por não realizar evento algum e ainda dar palpites nos eventos dos outros. 
Sou culpado de achar que um prato de comida vai dar prejuízos intermináveis a um festival. 
Sou culpado por não acompanhar a cultura do meu Estado, de perto. 
Sou culpado por não ter coragem de dizer aos meus filhos por que eles estão sendo barrados no local de trabalho que sempre acreditei ser o lugar certo pra eles. 
Sou culpado por não exaltar os eventos que fazem o certo. 
Sou culpado senhores ! 
E por assumir a minha culpa, espero não atrapalhar o andamento do “espetáculo”. 
Mas tem uma coisa que esses senhores que fazem essas regras ridículas não sabem. 
Fazer o que faço.
Então, eu vou seguir cantando do meu jeito, pensando sempre que ninguém vai controlar meus pensamentos,enquanto eles inventam regras ridículas eu invento música, enquanto eles aparecem em seus quinze minutos de fama , eu canto e sigo contando o meu serviço, e também tudo que está ao meu redor. Nós somos operários da cultura e não podemos ser algozes de nós mesmos,podemos até NÃO SABER REALIZAR UM EVENTO, mas temos sentimentos ,não sabemos talvez aceitar ou entender certas regras, sim porque regras são para serem obedecidas , desde que não sejam ridículas mas sabemos fazer uma coisa que os senhores das regras ridículas talvez não saibam. Nós soubemos, poesia, música que alias são por isso que as pessoas vão nesses eventos e juntando tudo isso sai uma maravilhosa obra de arte e isso sim, “ é um espetáculo”.

Bom dia. 

Nilton Ferreira

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